(Texto escrito por Eduardo José da Fonseca Costa)
O autor do texto (prof. Eduardo José da Fonseca Costa) cedeu seu texto para divulgação neste site. Divulgamos o texto por sua qualidade e por entender que deve ser lido e apreciado por todos que tenham interesse nesse tema.
O CPC vigente não tem parte geral. Num primeiro momento, isso poderia significar deficiência. Entretanto, não se descurou da boa gramática normativo-textual. Ao contrário: o Código Buzaid sempre foi tido como um dos maiores monumentos da história legislativa brasileira. Na verdade, a falta de parte geral resultou duma profunda coerência do legislador com as premissas ideológicas que o inspiraram. Nisso, o CPC brasileiro de 1973 não sofreu da hipocrisia que caracteriza a maioria dos códigos de processo civil ocidentais, que contém parte geral. Embora a doutrina italiana tenha edificado um modelo dogmático de processos judiciais puros, não logrou uma teoria efetivamente geral, que abarcasse categorias comuns às atividades cognitiva, executiva e cautelar. Infelizmente, a teoria “geral” do processo civil continuou limitando-se a uma teoria geral do processo de conhecimento. Logo, não se deve estranhar a técnica assumida pelo Código vigente, que fez do Livro I (dedicado ao processo de conhecimento) a própria parte geral, aplicável subsidiariamente aos Livros II (dedicado o processo de execução) e III (dedicado ao processo cautelar).
Não por outro motivo, os recém-formados saem das nossas faculdades analfabetos em execução e medidas de urgência. Com isso, a teoria geral do processo algemou-se a um círculo de ferro e deixou de gozar de um desenvolvimento científico mais apropriado. Muitos elementos comuns aos três modelos de processo tiveram seu âmbito de aplicação desgraçadamente circunscrito ao processo cognitivo. Esse “ranço cognitivista” acabou por retardar sobremaneira a evolução de institutos como a assistência, as “condições” da ação e a coisa julgada. A jurisprudência e a doutrina dificilmente aceitam: a) a intervenção de terceiros na execução (conquanto haja possibilidade de assistência na tela executiva); b) a legitimidade passiva posterior da meeira na execução (embora ela sofra diretamente os efeitos patrimoniais da constrição estatal); c) a formação de coisa julgada material no processo cautelar (embora não possa o requerente, com base no mesmo fundamento e contra a mesma parte, reiterar pedido de medida cautelar já rejeitado por sentença irrecorrível).
No Brasil, a tentativa mais bem acabada de livrar o processo cautelar da glorificação do processo cognitivo foi desenvolvida por Ovídio Araújo Baptista da Silva. Refratário ao italianismo da “Escola” Paulista de Direito Processual e valendo-se das categorias originais cunhadas por Pontes de Miranda, reviu a doutrina tradicional em torno do processo cautelar e deu a essa modalidade processual a dignidade a que ela sempre fez jus. No entanto, não se pode esperar, em meio a tamanho esforço acadêmico, que Ovídio tivesse conseguido livrar-se de todo e qualquer “ranço cognitivista”. Não conseguiu. Aliás, o seu trabalho dogmático não seria humano se fosse diferente. Mesmo ele, um dos mais importantes críticos da teoria “geral” do processo civil, não esteve plenamente imune à velha tradição. Afinal de contas, a condição de herdeiro é sempre bastante perigosa: herdam-se, a um só tempo, as sabedorias e os preconceitos. Logo, não existe intelectual que transcenda as bases que o constituíram. E Ovídio foi profundo estudioso dos clássicos da Processualística universal.
Ovídio defendia que no âmbito cautelar apenas pode haver coisa julgada formal. Ao afirmar isso, repetia a antiga cantilena de uma doutrina consagrada. Porém, escorando-se no pensamento majoritário, Ovídio renegou as próprias premissas dogmáticas. Inegavelmente, a tese da impossibilidade de coisa julgada material na tela cautelar configura uma das mais graves incoerências do seu sistema[1]. Com acerto, o Professor Luiz Eduardo Ribeiro Mourão diz que essa tese “não respeita as peculiaridades da atividade cautelar, mas permanece presa às características da coisa julgada quando aplicada ao processo de conhecimento, no qual se realiza julgamento em caráter definitivo” [2]. Veja-se a fina ironia: o jurista gaúcho chegou a padecer daquilo que mais tentou erradicar.
Isso é, aliás, comum na história do pensamento. Não raro, o fragmento de uma obra contradiz os pilares do edifício intelectual do seu autor. Nesse caso, deve o estudioso expor o conjunto pensado em sua idealidade coerente, isolar os trechos escritos dele dissonantes e diluir a contradição no todo sistêmico. É o que se pretende fazer no presente artigo: mostrar o choque entre as premissas cultuadas por Ovídio e a idéia de que sentença cautelar não faz coisa julgada material.
Uma importante premissa do pensamento de Ovídio é a idéia – bastante propagada na dogmática alemã – de que a coisa julgada material tem como limite objetivo o elemento sentencial declarativo pertencente ao capítulo que resolve o mérito[3]. Os elementos constitutivo, condenatório, mandamental e executivo não se tornariam imutáveis. Assim, a coisa julgada material seria um “manto”, que recairia sobre o reconhecimento que o juiz faz a respeito da existência ou inexistência da pretensão de direito material afirmada pelo autor. Ela seria eficácia declaratória [dado intrajacente] + indiscutibilidade [dado extrajacente]. Na sentença de procedência que transita em julgado, torna-se indiscutível a declaração de existência do direito alegado na petição inicial [= coisa julgada material positiva]; na sentença de improcedência transitada em julgado, indiscutível se torna a declaração de inexistência desse direito [= coisa julgada material negativa]. Não haveria a imutabilidade dos efeitos da sentença tout court, pois.
À luz da excêntrica teoria da constante 15, Pontes de Miranda afirmava que só pode haver coisa julgada material onde existe declaração como força [carga 5], alicerce imediato [carga 4] ou alicerce mediato [carga 3][4]. Se houver a declaração como elemento mínimo (ou seja, com carga 1 ou 2), não haverá quantum de energia suficiente para a formação de coisa julgada material[5] (nesse sentido, ele entendia que as sentenças cautelares só carregam carga 1 ou 2, o que as obstaria de ter força de coisa julgada[6]). Assim, se há declaração com carga 5, 4 ou 3, há necessariamente formação de res iudicata; se há declaração com carga 2 ou 1, não há. Logo, para Pontes, a coisa julgada material não é algo que se conecta diretamente à eficácia da declaração. Enfim, ela não tem origem externa, como se fosse algo que incidisse de fora para dentro, uma qualidade que se ajunta aos efeitos da sentença para qualificá-los e reforçá-los[7]. Na verdade, ela teria origem interna, seria algo que emana de dentro para fora, como se fosse uma conseqüência natural da suficiente declaratividade presente na sentença. A sentença seria mais “agente” da sua própria estabilidade do que “paciente”. Declaração e coisa julgada seriam fenômenos co-naturais, pois.
Para demonstrar a vinculação entre a eficácia declaratória e a coisa julgada material, Ovídio dá o exemplo das sentenças de procedência em ação renovatória. Segundo o jurista gaúcho, elas contêm dois elementos fundamentais: o constitutivo modificativo [= fixação de novo aluguel] e o declaratório [= declaração do direito do autor à prorrogação do contrato de locação]. A realização prática do elemento constitutivo poderá ser plenamente revogada pelas partes, contanto que após o trânsito em julgado passem a praticar um valor de aluguel, diferente daquele fixado na sentença, ou desde que o locador ignore o comando sentencial e concorde em receber do locatário os alugueres no valor anteriormente vigente. Ainda assim, o efeito declaratório jamais poderá ser eliminado: tornar-se-á inquestionável a existência do direito subjetivo do locatário à renovação do contrato de locação quando do ajuizamento da ação[8]. Isto será sempre imutável.
Ovídio dá mais dois exemplos: o dos cônjuges separados judicialmente em processo litigioso e o dos confinantes dos terrenos cuja linha demarcatória tenha sido fixada em ação de demarcação. Todos poderão dispor diferentemente daquilo que as respectivas sentenças tenham decidido: “os cônjuges restabelecendo a sociedade conjugal desfeita pela sentença; os confinantes alterando a linha divisória entre os prédios judicialmente demarcados” [9]. No entanto, os respectivos elementos sentenciais declaratórios são inelimináveis, o que obsta o Poder Judiciário de exercer futuramente as mesmas atividades jurisdicionais (separatória e demarcatória) sobre os mesmos objetos[10]. Ou seja, as mesmas partes não poderão rediscutir noutro processo se o autor era ou não titular da pretensão de direito material que alegou em juízo, conquanto possam ulteriormente acomodar-se no plano fático, ignorando o comando contido na sentença transitada em julgado.
Outra premissa importante do pensamento de Ovídio é a idéia de que à base de toda “ação” [= ação em sentido processual] existe uma pretensão de direito material resistida ou insatisfeita, cuja ação [= ação de direito material] se deseja ver realizada substitutivamente pelo Estado. Noutros termos: uma vez que para toda pretensão há uma ação que a assegura, e visto que o monopólio da jurisdição pelo Estado impede o titular da pretensão resistida ou insatisfeita de realizar a ação com as próprias mãos, ao titular só resta valer-se da “ação”, afirmando a existência da pretensão de direito material em juízo e pedindo ao Estado que realize a ação em seu lugar[11]. Daí se vê que não houve supressão da ação pela “ação”, mas simples duplicação de ações: a) uma dirigida contra o obrigado [= ação = ação em sentido material]; b) outra contra o Estado [= “ação” = ação em sentido processual], para que ele, certificando a existência da pretensão resistida ou insatisfeita, a satisfaça coercitivamente, realizando a mesma atividade privada de que fora impedido o titular[12].
Nesse sentido, quando se ajuíza uma “ação” cautelar, também se invoca a existência de uma específica pretensão (a pretensão de direito material à segurança, mais conhecida como “direito substancial de cautela”), por meio da qual se pode exigir que seja assegurado tanto um fato (p. ex., ação cautelar de produção antecipada de provas) quanto a própria pretensão de direito material que já esteja à base da “ação” principal (p. ex., ação cautelar de seqüestro). Aqui, também se quer ver realizada pelo Estado a respectiva ação de direito material, uma vez que o sistema jurídico proíbe o agir privado[13]. Isso mostra que as “ações” cautelares não são “ocas”. Nelas, também existe res in iudicium deducta (que é a pretensão à segurança), que não se confunde com a res in iudicium deducta da “ação” principal (que é a pretensão a assegurar-se). Elas têm mérito próprio, pois[14].
Assim pensando, Ovídio Baptista e Pontes de Miranda estavam isolados da doutrina majoritária, sustentando a existência de uma duplicação de demandas – a demanda cautelar e a principal –, cada qual com a subjacente relação jurídica de direito material controvertida que lhe é própria e com a pretensão e a ação que daí defluem. Não se pode olvidar que, para esses autores, existe uma relação íntima entre o direito material e o mérito: o mérito é a res in iudicium deducta, e a res (ou seja, a pretensão) que se deduz em juízo pertence ao direito material. Portanto: em sentido subjetivo, o direito material é a pretensão cuja existência se afirma em juízo como condição para a prestação da tutela jurisdicional (o que autoriza esses juristas a dizerem, v.g., que à base das “ações” rescisórias sempre há um “direito subjetivo material à rescisão do julgado”); já em sentido objetivo, o direito material é o conjunto das normas jurídicas aplicadas pelo juiz na composição da lide[15].
Estabelecidas as duas premissas, delas se pode retirar uma conclusão irretorquível: a sentença cautelar favorável de mérito faz coisa julgada material.
Quando o juiz profere sentença de procedência no processo cautelar, ele declara em favor do requerente a existência do chamado “direito substancial de cautela”. Reconhece, enfim, a existência da pretensão de direito material à segurança afirmada em juízo. Nesse sentido, ele emite um juízo de certeza. Sob cognição vertical completa ou exauriente, o juiz aclara o mundo do direito e certifica que nele existe a situação jurídica subjetiva ativa cuja titularidade o requerente alegou ser sua (portanto, na verdade, no processo cautelar, apenas se produz juízo de verossimilhança ou probabilidade, sob cognição vertical incompleta ou sumária, quando se profere a decisão liminar, não quando se profere a sentença). Logo, se a sentença cautelar típica possui eficácia preponderante mandamental (Pontes de Miranda diria que há, aqui, a mandamentalidade em primeira plana ou em grau 5), é inegável que ela também traz consigo eficácia alicerçal imediata declaratória (ou seja, declaratividade em segunda plana ou em grau 4).
Assim sendo, vê-se, na sentença cautelar, declaratividade em tônus suficiente para a formação de coisa julgada material: o juiz declara a pretensão à segurança, compromete-se a realizar a respectiva ação de direito material e, se a sentença tornar-se irrecorrível, nunca mais se poderá rediscutir em um outro processo a mesma causa[16]. Sublinhe-se: a declaração judicial tornada indiscutível tem como objeto a pretensão material à segurança (que integra a lide cautelar), e não a pretensão de direito material a ser assegurada (a qual integra a lide principal). Havendo a formação de coisa julgada material no processo cautelar, fica vedada, portanto, a rediscussão específica da lide cautelar, não – obviamente – a rediscussão da lide principal[17]. Ou seja, a coisa julgada material barra a postulação repetida de medida cautelar já denegada, dês que sejam idênticos o pedido, o fundamento e as partes[18]. Essa é a sutileza intelectual para a qual não desperta a grande maioria dos juristas do processo.
Exemplo interessante é o da ação cautelar preparatória de indisponibilidade de bens proposta pelo Ministério Público. Suponha-se que: a) não exista prova de que os requeridos estejam esvaziando seus patrimônios com o objetivo de frustrar futura execução por quantia certa; b) o pedido cautelar seja julgado improcedente por falta de demonstração da presença de periculum in mora; c) a sentença torne-se irrecorrível; d) após o ajuizamento da ação de improbidade administrativa, remova-se o promotor originário; e) o novo promotor oficiante decida ajuizar incidentalmente idêntica ação cautelar de indisponibilidade de bens (em face dos mesmos requeridos e com base nos mesmos fatos e fundamentos jurídicos). Ora, nesse caso, o juiz extinguirá o segundo processo cautelar sem resolução do mérito por esbarrar no óbice da coisa julgada (CPC, art. 267, IV).
Nem se diga que a sentença terá como fundamento a alegação genérica de “vedação de bis in idem” [19]: não há razão para essa vedação receber o nome de coisa julgada material no processo de conhecimento e receber outro apelido no processo cautelar. Como bem diz Luiz Eduardo R. Mourão, “a função da coisa julgada cautelar será, única e exclusivamente, impedir a repropositura da mesma demanda cautelar, não produzindo qualquer efeito sobre a demanda principal” [20]. Humberto Theodoro Júnior, para sustentar a inexistência de coisa julgada material no processo cautelar, alega que “a improcedência de uma ação cautelar não impede que a mesma parte, em outra oportunidade, com novos elementos de convicção […] venha novamente postular a tutela preventiva que antes lhe foi negada” (destaque nosso)[21]. Entretanto, esses “novos elementos de convicção” somente podem ser novos fatos ou novos fundamentos jurídicos, com relevante alteração da causa de pedir, sob pena de ajuizar-se a mesma ação e obrigar-se o juiz a reapreciar pedido já rejeitado[22]. Não é dado ao requerente propor novamente a mesma ação cautelar escorando-se tão apenas em novos argumentos jurídicos, ou valendo-se de novos meios de persuasão para fatos antigos. Isso alimentaria uma repetição abusiva dos pedidos cautelares. Daí a necessidade de um dispositivo legal como o parágrafo único do artigo 808 do Código (“se por qualquer motivo cessar a medida [cautelar], é defeso à parte repetir o pedido, salvo por novo fundamento”). Portanto, a afirmação do processualista mineiro só faz confirmar a tese da coisa julgada material cautelar.
Na verdade, alguns vícios do cotidiano forense dificultam a percepção do fenômeno da coisa julgada cautelar. A maioria dos juízes tem o (péssimo) hábito de não sentenciar no processo cautelar. Fazem vista grossa à boa técnica e deixam para resolver tudo na sentença do processo principal. Com isso eles obrigam o requerente a reiterar o pedido de concessão da medida de urgência porventura indeferido (e não a propor nova demanda cautelar após o trânsito em julgado da sentença cautelar de improcedência). Como bem frisado por Willard de Castro Villar, “o juiz não pode e não deve unir o processo cautelar ao processo principal, proferindo uma só decisão”, pois, “se existem dois processos, um ordinário, denominado na lei de ‘processo principal’ e outro procedimento cautelar, nada deve fazer com este último perca a sua individualidade ou tipicidade” [23].
Apesar de todos os argumentos em sentido contrário, Ovídio sempre insistiu que no processo cautelar só existe coisa julgada formal. Dizia com todas as letras que “a jurisdição cautelar não colima a produção de coisa julgada material sobre a relação jurídica cautelada” [24]. Nisto, estava certo. O problema é que a coisa julgada material produzida pela jurisdição cautelar não diz respeito à relação jurídica acautelada, mas sim à relação jurídica lateral, na qual está inserido o chamado “direito substancial de cautela”. Surpreendentemente, Ovídio Baptista chega a indagar se, “havendo na própria ação cautelar um res in iudicio deducta, a ‘res judicata’ que daí resulte não terá eficácia de coisa julgada material?” [25]. A sua resposta, porém, foi negativa. O processualista gaúcho não confiou no insight oculto na sua pergunta. Teimou em negar a irradiação de força de coisa julgada material pela sentença cautelar sob a alegação de “tais sentenças não contêm suficiente dose de eficácia declarativa” [26].
Quando dizia que as sentenças cautelares são proferidas sob cognição incompleta ou sumária, é possível que Ovídio estivesse deixando-se induzir pela natureza probabilística do fumus boni iuris. Se um dos pressupostos nucleares da medida cautelar é a verossimilhança da pretensão objeto da lide principal, é tentadora a conclusão de que a sentença cautelar não goze da certeza que deflui duma cognição completa ou exauriente. Esse raciocínio simplista é falacioso, mas fascina. É tão fascinante que tem convencido a maioria dos processualistas. O próprio Ovídio – que contribuiu sobremaneira para a divulgação da teoria dos três planos do mundo jurídico (que são os planos da existência, validade e eficácia) – foi seduzido.
Refiro-me à famosa teoria de Pontes de Miranda porque ela tem grande importância no desfazimento dos equívocos acima apontados. Não se pode perder de vista que o “direito substancial de cautela” é uma pretensão, cujo suporte fático é fundamentalmente composto por dois elementos: fumus boni iuris + periculum in mora. Presentes os dois pressupostos, o suporte fático ingressa no mundo jurídico pelo plano da existência, sobressalta o plano da validade, e ingressa no plano da eficácia para ali irradiar seu efeito principal: a constituição da pretensão de direito material à segurança. Vê-se que, embora o suporte fático contenha um elemento probabilístico [plano da existência], a pretensão que daí nasce tem existência certa [plano da eficácia].
Não raro as hipóteses de incidência normativa descrevem probabilidades, ficções ou presunções. No entanto, as situações jurídicas que nascem a partir dessa incidência não têm existências meramente prováveis, fictas ou presumidas. Não. As situações jurídicas são ou não são. O fumus boni iuris é elemento do suporte fático do “direito subjetivo de cautela”, mas esse “direito” – uma vez concretizado seu suporte fático – tem sua existência revestida de certeza. O fato de um direito subjetivo ter suporte fático probabilístico não significa que o reconhecimento da existência desse direito não se faça, na sentença, sob juízo de certeza. Aliás, inúmeros são os direitos subjetivos cujo suporte fático traz uma mera probabilidade: os lucros cessantes constituem mera probabilidade, embora suficiente para o nascimento do direito à indenização; os direitos do nascituro despontam com fulcro na mera probabilidade de um nascimento com vida; é possível disposição testamentária em favor de prole eventual de pessoas existentes[27].
Da mesma forma, a simples probabilidade de o requerente ser o titular da pretensão objeto da lide principal pode lhe conferir pretensão de direito material a uma cautela (desde que o respectivo suporte fático também contenha o elemento do periculum in mora). Não se trata de realidade juridicamente excêntrica, pois. A verossimilhança ou a probabilidade de um direito a ser discutido na ação principal não implica a verossimilhança ou probabilidade do outro direito a discutir-se na ação preparatória ou incidental. Enfim, a cognição sumária a respeito da pretensão objeto da lide principal não se confunde com a cognição exauriente a respeito da pretensão objeto da lide cautelar[28].
Por isso, na fundamentação da sentença cautelar, quando o juiz certifica a presença do fumus boni iuris, ele outra coisa não faz senão elaborar um juízo de certeza a respeito de um elemento que habita o plano da existência. A fortiori, quando aponta na decisão liminar a presença do fumus boni iuris, fá-lo mediante emissão de juízo de simples verossimilhança ou probabilidade. Ou seja: a) no processo cautelar, quando o juízo sentencia, tem a certeza de que o “direito substancial de cautela” existe; b) quando concede a liminar (isto é, quando antecipa os efeitos práticos da tutela jurisdicional acautelatória pretendida ao final), entende simplesmente que a existência do “direito substancial de cautela” é verossímil ou provável. Se assim não for, ter-se-á de sustentar – não sem um certo ar de comédia – que no processo cautelar a sentença se profere sob cognição sumária e a decisão liminar sob cognição ultra-sumária ou sumaríssima (que alguns chamam de cognição “rarefeita”).
Daí por que soa como um enorme despautério a afirmação – tantas vezes propalada por Ovídio Baptista – de que “o chamado direito substancial de cautela, na perspectiva do processo cautelar, é ingrediente que entra como […] um pressuposto a legitimar a outorga da tutela assegurativa”, embora esse pressuposto jamais encontre um “ambiente para se ver declarado existente na demanda cautelar, permanecendo, mesmo depois da sentença final de procedência, como uma simples hipótese, como uma simples possibilidade de existência efetiva” (?!)[29].
A confusão feita por Ovídio é patente.
Em verdade, a única coisa que a sentença cautelar pode considerar como uma “mera hipótese” ou “possibilidade de existência efetiva” é a pretensão a assegurar-se (já que ela entra no suporte fático da pretensão à segurança como algo verossímil), não a pretensão à segurança. Se assim não fosse, a categoria do “direito substancial de cautela” seria a maior das inutilidades dogmáticas.
Chega-se a suspeitar que a ojeriza à coisa julgada cautelar se deva ao fato de Ovídio não admitir a ocorrência de satisfatividade no processo cautelar. Para ele, o âmbito cautelar não é palco de satisfação, só de asseguração. Ele vincularia a idéia de satisfação à idéia de declaração: a declaração do “direito substancial de cautela” implicaria sua satisfação. Isso causa muita estranheza, pois Ovídio passou a vida ensinando que pouco importa, para haver satisfação, que o juiz “diga o direito” a título definitivo. Quem satisfaz “dizendo o direito” sob cognição completa (e, portanto, sob juízo de certeza), satisfaz definitivamente, e quem satisfaz “dizendo o direito” sob cognição incompleta (e, portanto, sob juízo de aparência), satisfaz provisoriamente. Não é obrigatória a coexistência entre a apreciação definitiva do mérito e a satisfação da pretensão objeto da lide.
Contudo, no processo cautelar, há indisfarçável satisfatividade. A sentença cautelar favorável de mérito satisfaz a pretensão à segurança (que é deduzida na “ação” cautelar), e não a ameaçada pretensão objeto da lide principal a assegurar-se (que é deduzida na “ação” principal)[30]. Assegura-se a pretensão substancial objeto da lide principal, satisfazendo-se a pretensão substancial objeto da lide cautelar. Isso explica o caráter antecipatório da liminar cautelar: como liminar que é, satisfaz provisoriamente a pretensão à segurança, antecipando os efeitos práticos da tutela cautelar pretendida ao final[31].
Portanto, no processo cautelar, a sentença se profere sob juízo de certeza e cognição exauriente ou completa, enquanto a decisão liminar se profere sob juízo de verossimilhança e cognição sumária ou incompleta. Assim sendo, se a sentença cautelar declara sob juízo de certeza a existência do “direito substancial de cautela” (isto é, se promove o accertamento desse direito), então ela produz coisa julgada material e torna indiscutível o reconhecimento dessa específica pretensão de direito material (e não da pretensão de direito material objeto da lide principal)[32].
É bem verdade que o Código de Processo Civil vigente admite, extraordinariamente, no âmbito do processo cautelar, o pronunciamento da prescrição ou da decadência relativa à pretensão objeto da lide principal (artigos 810 e 817). Isso não significa, todavia, que essa específica pretensão material esteja à base da “ação” cautelar. Em verdade, o artigo 810 do CPC exprime técnica de economia processual tipicamente brasileira, que permite ao juiz da ação cautelar preparatória reconhecer – de maneira heterotópica e antecipada – a prescrição ou a decadência relativa à pretensão material que estará à base da “ação” principal. Ou seja, permite-se a resolução ex ante do mérito da ação principal num âmbito que lhe é estranho[33] (o que mostra que o processo cautelar sempre foi um “apêndice” para o legislador de 1973).
Há quem diga que a sentença de procedência cautelar é “revogada” pela sentença de improcedência principal.
Isso explicaria a inexistência de coisa julgada material no processo cautelar.
Sem razão, porém.
A sentença de improcedência principal revoga somente a eficácia sentencial cautelar mandamental. Nada acontece à eficácia sentencial cautelar declaratória. Nada pode mudar o reconhecimento de que o “direito substancial de cautela” existiu. Por conseguinte, não se retira do mundo jurídico toda a sentença de procedência cautelar. Só se revoga a parte que dela repercute no mundo empírico-social, ou seja, a eficácia mandamental[34]. A eficácia declaratória permanece incólume. Desfaz-se a sentença cautelar em parte, não no todo, pois[35].
Nota-se que se fala em revogação de eficácia mandamental, não de efeito.
Há importante distinção dogmático-processual entre esses dois termos. A eficácia é a aptidão da sentença para a produção de efeitos no mundo fenomênico, independentemente de sua efetiva produção. A sentença condenatória permite ao credor satisfazer-se mediante execução forçada sobre o patrimônio do devedor (eficácia executiva); mas essa virtualidade só será realizada após o Estado penhorar bens do devedor, reduzi-los a dinheiro e entregar a soma ao credor (efeito executivo). Já na sentença constitutiva, a eficácia constitutiva e o seu efeito são sincrônicos, pois não se concebe o ato de modificar sem a modificação[36]. Assim, por trás da dicotomia eficácia–efeito está a distinção aristotélica entre potência (δύναμις) e ato (ένέργεια): a eficácia é mero efeito virtual, efeito em potência, possibilidade do efeito in abstrato; o efeito é efeito atual, efeito em ato, atualidade do efeito in concreto[37].
Nesse sentido, pode-se dizer que a eficácia sentencial cautelar mandamental sempre é revogada pela sentença de improcedência proferida no processo principal. Nem sempre há efeito para ser desfeito, porém. A sentença desfavorável de mérito no processo principal pode anteceder a implementação da decisão cautelar. Ou seja, a eficácia sentencial cautelar mandamental pode ser apagada antes de tornar-se efeito. Se a sentença cautelar já tiver sido efetivada, haverá destruição de eficácia mandamental e de efeito; se ainda não tiver havido efetivação, só se terá a eficácia para destruir.
É comum no processo civil, aliás, a revogação parcial da sentença, sem que se atinja a eficácia declaratória.
Não raro, a eficácia mandamental ou executiva da sentença de procedência na ação de cognição parcial é revogada pela superveniência de sentença de procedência em ação de cognição plena. No litígio entre A e B, o elemento executivo da sentença de reintegração de posse favorável a A é suprimido pela posterior sentença reivindicatória favorável a B. Já no litígio entre C e D, o elemento mandamental da sentença de manutenção de posse favorável a C é apagado pela ulterior sentença reivindicatória favorável a D. Todavia, tanto num caso quanto no outro, o elemento declaratório da sentença possessória – que atestou a existência do chamado “direito de posse” (ius possessionis) – permanece incólume.
Nem poderia ser de outra forma. A declaração do direito de propriedade em favor de B e D não importa na inexistência do direito de posse em favor de A e C. Do mesmo modo, a inexistência da pretensão objeto da lide principal não importa na inexistência da pretensão material da lide cautelar. A procedência da demanda cautelar significa que o requerente era titular do “direito substancial de cautela” quando aforou a ação, visto que presentes à época o fumus boni iuris e o periculum in mora. Portanto, a declaração de inexistência da pretensão material na ação principal não significa que a pretensão à segurança nunca existiu. Existiu a pretensão cautelar, mas não a pretensão principal: eis o ponto. Isso mostra que o “direito substancial de cautela” é autônomo (tese sempre repisada por Ovídio ao longo de toda a sua vida, mas que ele não levou às últimas conseqüências quando se defrontou com o fenômeno da coisa julgada cautelar).
Portanto, pode ser que: i) exista a pretensão à segurança e não exista a pretensão a ser assegurada [= sentença cautelar de procedência + sentença principal de improcedência]; ii) a pretensão à segurança e a pretensão a ser assegurada não existam [= sentença cautelar de improcedência + sentença principal de improcedência]; iii) a pretensão à segurança e a pretensão a ser assegurada existam [= sentença cautelar de procedência + sentença principal de procedência]; iv) a pretensão à segurança não exista e a pretensão a ser assegurada exista [= sentença cautelar de improcedência + sentença principal de procedência].
Em verdade, a necessidade de revogar-se a eficácia sentencial cautelar mandamental surge porque entre sentença cautelar de procedência e sentença principal de improcedência há uma incompatibilidade pragmática, não uma contradição sintática. No plano abstrato, as duas sentenças – como se viu acima – convivem tranqüilamente. No plano concreto, porém, os comandos dessas sentenças são mutuamente excludentes. É impossível haver, no campo empírico, a concordância prática entre o comando judicial que determine o arresto cautelar de bem do réu e o comando judicial que reconheça a inexistência do crédito afirmado pelo autor. Se da sentença cautelar de procedência emana um mandado, da sentença principal de improcedência irradia-se o respectivo contramandado. Na primeira sentença, o mandado é força ou eficácia preponderante em sinal positivo (+); na segunda, é efeito anexo em sinal negativo (-)[38]. É justamente o que acontece entre as demandas possessória e petitória: a ordem da possessória é encoberta pela contra-ordem da reivindicatória.
Para os mais desavisados, este trabalho pode parecer uma crítica negativa a Ovídio Baptista. Decididamente, não é. Mas também não se trata de um artigo laudatório, cheio de inúteis tietagens. Se vivo estivesse, Ovídio não suportaria essa pieguice tão comum ao meio acadêmico. De certo, a melhor maneira de homenagear um grande processualista é dialogar com o seu pensamento, cutucar as suas premissas, atestar a coerência das suas conclusões, colocar à prova a consistência prática dos seus modelos. E é nesse exercício que se sente a grandeza de um jurista: vêem-se os caminhos tortuosos cujo percurso não temeu, o esforço para superar as limitações do seu tempo, a capacidade de devassar temas tão cáusticos. Por isso foi escolhido o tema da coisa julgada material no processo cautelar. Aqui vêm à torna, ao mesmo tempo, as grandes conquistas e os raríssimos desacertos de Ovídio. Conquistas e desacertos que são inerentes a quem, como ele, enfrentou bravamente assuntos dos quais a maioria dos processualistas fugiu (a natureza da condenação civil, a estrutura e a função da tutela cautelar, a taxionomia das ações de Pontes de Miranda, as bases ideológicas do CPC de 1973, etc.). É inquestionável que Ovídio está entre os maiores processualistas brasileiros de todos os tempos. Mas é inegável também que, de todos eles, foi o mais corajoso, o mais independente e o que trilhou o caminho mais difícil. Isso obriga os que o sucedem a estudá-lo com afinco. Não se pode permitir que as suas notáveis contribuições à ciência processual passem desapercebidas.
Bibliografia
AMARAL, Guilherme Rizzo. “A polêmica em torno da ação de direito material”. Revista da Ajuris nº 97, pp. 87-102.
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[1] Entendendo inexistir coisa julgada material no processo cautelar, p. ex.: SILVA, Ovídio Araújo Baptista da Silva. Curso de processo civil. v. 3, pp. 199-208; idem. Do processo cautelar, pp. 182-185; idem. “Medidas cautelares”, p. 444. Ainda contra a tese da coisa julgada material no processo cautelar, p. ex.: ARMELIN, Donaldo. “Flexibilização da coisa julgada”, p. 89; LACERDA, Galeno. Comentários…, pp. 402 e ss.; LOPES DA COSTA, Alfredo de Araújo. Medidas preventivas, pp. 49-52; PORTO, Sérgio Gilberto. Coisa julgada civil, pp. 100 e ss.; SILVA, José Carlos Pestana de Aguiar. “Processo cautelar”, p. 332; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim e MEDINA, José Miguel Garcia. O dogma da coisa julgada, pp. 134-135; WATANABE, Kazuo. Da cognição no processo civil, p. 161.
[2] Coisa julgada, p. 327.
[3] No mesmo sentido, p. ex.: BOTELHO DE MESQUITA, José Ignácio. Coisa julgada, pp. 6 e ss.; PORTO, Sérgio Gilberto. Coisa julgada civil, pp. 78-79. Uma importante crítica a essa doutrina se encontra nos textos de José Carlos Barbosa Moreira, por meio dos quais travou erudito debate com Ovídio Baptista. Sobre essa famosa polêmica, p. ex.: MOURÃO, Luiz Eduardo Ribeiro. Coisa julgada, pp. 210-219.
[4] A sentença é vista por Pontes como um átomo (lembrando-se que, para ele, sentença = tutela jurisdicional): α) tem cinco “níveis de energia” (declarativo, constitutivo, condenatório, mandamental e executivo); β) dentro de cada “nível” há “cargas”, às quais se pode atribuir o “peso” 1, 2, 3, 4 ou 5; γ) somando-se os “pesos” dos cinco “níveis”, atinge-se sempre o número 15 (quinze); δ) não há dois “níveis” com igual “peso” ou “quantum de energia”. Logo, tudo se passa como se, no “mundo das sentenças”, todos os átomos tivessem o mesmo “peso”, embora esses “pesos” estejam internamente distribuídos de modo diferente nos cinco “níveis de energia”. Enfim, é como se para cada tipo de ação houvesse um “espectro de energia sentencial” único, que lhe servisse de marca registrada. A sentença de despejo, por exemplo, teria o seguinte “espectro eficacial”: 5 (cinco) de executividade [= comando para a restituição do imóvel locado] + 4 (quatro) de constitutividade [= desfazimento do contrato locatício] + 3 (três) de declaratividade [= reconhecimento do direito do autor à recuperação da coisa alugada] + 2 (dois) de mandamentalidade [= ordem para que se cancele a averbação do contrato de locação no cartório de registro imobiliário] + 1 (um) de condenatoriedade [= condenação do réu nas despesas processuais]. Já a “configuração espectral” da sentença de usucapião seria a seguinte: 5 (cinco) de declaratividade [= reconhecimento do direito de propriedade do usucapiente]; 4 (quatro) de mandamentalidade [= determinação para provocar-se o oficial de registro]; 3 (três) de constitutividade [= formação do título a ser levado a registro no cartório]; 2 (dois) de executividade [= colocação na esfera do autor do que até então estava sob a esfera do réu]; 1 (um) de condenatoriedade [= condenação do réu nas despesas processuais]. À carga 5, Pontes dá o nome de “força”; à carga 4, o nome de “eficácia imediata”; à carga 3, “eficácia mediata”; às cargas 1 e 2, “eficácias mínimas”.
[5] Tratado das ações. t. 2, pp. 364-365.
[6] Em sentido similar, e.g.: OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro e LACERDA, Galeno. Comentários…, p. 379. Paulo Roberto de Oliveira Lima defende que qualquer sentença pode produzir coisa julgada material, mesmo que porte baixa carga de declaração (Contribuição à teoria da coisa julgada, p. 26).
[7] Sobre a coisa julgada como “qualidade”: LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença, pp. 38 e ss. Ovídio também defende que a coisa julgada é uma qualidade, e não efeito da sentença (ponto em que concorda com Liebman); porém, sustenta que essa qualidade não se ajunta ao conteúdo e a todos os efeitos da sentença, mas só ao efeito declaratório, tornando-o imutável (ponto em que discorda de Liebman) (Curso de processo civil. v. 1, p. 496). Entendendo que a coisa julgada material “reveste todo o conteúdo decisório, e não apenas o elemento declaratório”, p. ex.: TESHEINER, José Maria. Eficácia da sentença e coisa julgada no processo civil, p. 74
[8] Curso de processo civil. v. 1, p. 495.
[9] Curso de processo civil. v. 1, p. 495.
[10] Para Luiz Eduardo Ribeiro Mourão, a coisa julgada é “situação jurídica que se caracteriza pela proibição de repetição do exercício da mesma atividade jurisdicional, sobre o mesmo objeto, pelas mesmas partes (e, excepcionalmente, por terceiros), em processos futuros. Para alcançar esse desiderato, vale-se o legislador de duas técnicas processuais: (a) veda a repetição da demanda; (b) imutabiliza as decisões transitadas em julgado” (Coisa julgada, p. 29).
[11] Advirta-se: conquanto haja “ação” para toda ação, nem sempre haverá ação em toda “ação”. Alguém pode valer-se da jurisdição para exercer pretensão, sem ainda exercer a correspondente ação de direito material. É o caso da interpelação judicial: quem interpela ainda não age, só exige. Terá havido “ação”, porque se invocou a tutela estatal, mas não exercício de ação (PONTES DE MIRANDA, Tratado das ações. t. 1, p. 10). Neste caso, a ação ainda será atividade do obrigado, caso realize voluntariamente a prestação.
[12] Uma polêmica sobre a existência da ação em direito material se pode ver em: AMARAL, Guilherme Rizzo. “A polêmica em torno da ação de direito material”, pp. 87-102; MITIDIERO, Daniel Francisco. “Polêmica sobre a teoria dualista da ação…”, pp. 33-40. O tema da ação de direito material permeia, praticamente, toda a obra de Pontes de Miranda e Ovídio Baptista, sendo difícil apontar uma fonte específica de consulta. Sugiro, entretanto, a leitura do livro Teoria da ação de direito material, do processualista alagoano Pedro Henrique Pedrosa Nogueira, e dos artigos que integram a obra coletiva Teoria quinária da ação, organizada por Pedro, por mim e por Luiz Eduardo Ribeiro Mourão.
[13] Sobre a autonomia da pretensão de direito material à segurança: SILVA, Ovídio A. Baptista da. As ações cautelares e o novo processo civil, pp. 27 e ss.; idem. A ação cautelar inominada no direito brasileiro, pp. 148 e ss.
[14] Em sentido contrário, v.g.: VILLAR, Willard de Castro. Ação cautelar inominada, pp. 180 e ss. Humberto Theodoro Jr. admite a presença de mérito na ação cautelar [= pedido de medida concreta para a eliminação do perigo de dano], mas não reconhece a existência do “direito substancial de cautela”: escorando-se nas lições de Ronaldo Cunha Campos e Antonino Coniglio, diz que o objeto da proteção cautelar é sempre um interesse público de índole processual (Processo cautelar, pp. 44, 59-61 e 73).
[15] Questão interessante é saber se recurso é “ação” (tese defendida, e.g., por Emilio Betti, Peter Gilles, Jaime Guasp, Carlo Umberto del Pozzo e Araken de Assis) e, caso seja afirmativa a resposta, se à sua base há um “direito subjetivo material à revisão do julgado” (?!). Mas isso é uma outra história…
[16] No mesmo sentido, p. ex.: ASSIS, Araken de. “Breve contribuição ao estudo da coisa julgada nas ações de alimentos”, pp. 249-253.
[17] Admite a existência de lide cautelar, e.g.: SOUZA, Gelson Amaro de. “Coisa julgada no processo cautelar”, pp. 697 e ss.
[18] No mesmo sentido, p. ex.: BAUR, Fritz. Estudos sobre a tutela jurídica mediante medidas cautelares, pp. 131-134.
[19] A tese do ne bis in idem é adotada por Sérgio Gilberto Porto (Coisa julgada civil, p. 101). Para justificar a impossibilidade de repetir-se pedido cautelar já repelido por sentença denegatória irrecorrível, Ovídio socorre-se da teoria de Heinitz sobre o “efeito vinculativo do primeiro julgamento” (Curso de processo civil. v. 3, p. 201). Lopes da Costa sugere que, nesse caso, o juiz indefira liminarmente a petição inicial “com fundamento na chicana do requerente” (Medidas preventivas, p. 52).
[20] Coisa julgada, p. 331.
[21] Ação cautelar inominada, p. 178.
[22] No mesmo sentido, p. ex.: SOUZA, Gelson Amaro de. “Coisa julgada no processo cautelar”, p. 708.
[23] Ação cautelar inominada, p. 178.
[24] As ações cautelares e o novo processo civil, p. 75.
[25] Doutrina e prática do arresto ou embargo, p. 151.
[26] Doutrina e prática do arresto ou embargo, p. 151.
[27] Sobre a probabilidade como elemento de suportes fáticos: MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência, p. 41.
[28] Adota-se a distinção entre cognição sumária (ou incompleta) e cognição exauriente (ou completa) feita por Kazuo Watanabe (Da cognição no processo civil, pp. 127 e ss.).
[29] Do processo cautelar, p. 75. A repugnância que Ovídio tinha à idéia de “accertamento do direito à cautela” pode ser vista nas veementes palavras com que escreveu o verbete “Medidas cautelares” (pp. 446-448).
[30] O próprio Ovídio Baptista reconhece isso em passagem de sua obra (A ação cautelar inominada…, p. 155).
[31] “Liminar” deriva de liminaris, de limen (porta, entrada, soleira). Indica tudo o que é realizado inicialmente, que se obtém ex ante. Trata-se de tutela concessível no princípio, junto ao despacho da petição inicial ou após a ouvida da parte contrária, que adianta a providência que, pelo regime normal, só ocorreria como eficácia da futura sentença de procedência. Assim, toda liminar tem natureza antecipatória. Para um aprofundamento do conceito de liminar, v. nosso O “direito vivo” das liminares…, pp. 22-25.
[32] Luiz Edson Fachin sustenta que só há coisa julgada material nas “efetivas ações cautelares” (e.g., seqüestro, arresto, arrolamento, busca e apreensão, produção antecipada de provas). Ficariam excluídas, por exemplo, a justificação, a homologação do penhor legal, a posse em nome do nascituro, o atentado (“Coisa julgada no processo cautelar”, p. 57).
[33] Sobre o tema, v. os excelentes apontamentos de Galeno Lacerda (Comentários…, pp. 422-430).
[34] Sobre a mandamentalidade da ação cautelar, e.g.: SILVA, Ovídio Baptista da. Curso de processo civil. v. 2, pp. 348-349; idem. Curso de processo civil. v. 3, pp. 79-82 e 182-189; idem. Do processo cautelar, pp. 93-97. Para Ovídio, “a sentença mandamental é a única expressão jurisdicional capaz de comportar a tutela cautelar” (Do processo cautelar, p. 95). Todavia, a afirmação não encontra plena ressonância no sistema desenvolvido por Pontes de Miranda, que, ao lado das cautelares mandamentais (e.g., arresto; seqüestro; atentado), defendia haver cautelares constitutivas (e.g., caução; separação de corpos; arrolamento de bens) e executivas (e.g., obra de conservação; entrega de bens próprios; exibição de documento) (Tratado das ações. t. 6, p. 339).
[35] Influenciado por José Frederico Marques, Gelson Amaro de Souza prefere explicar o fenômeno à luz do princípio rebus sic stantibus (“Coisa julgada no processo cautelar”, pp. 705-707 e 711).
[36] Cf. SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso de Processo Civil. v. 1, p. 493.
[37] Cf. ASSIS, Araken de. Execução de tutela antecipada, p. 45; LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Eficácia das decisões e execução provisória, p. 147.
[38] A advertência de que o contramandado é efeito anexo da segunda sentença me foi pessoalmente feita pelo jovem e brilhante processualista gaúcho Guilherme Recena Costa. Com razão: trata-se de eficácia irradiada pela sentença, embora o juiz nem sempre disponha expressamente sobre a matéria. Segundo Ovídio Baptista, “A característica dos chamados efeitos anexos da sentença é serem eles externos, não tendo a menor correspondência com o seu respectivo conteúdo. […] Não fazendo parte da demanda nem da sentença, o efeito anexo não será objeto do pedido do autor nem de decisão por parte do juiz. Ele decorre da sentença, mas não é tratado por ela como matéria que lhe seja pertinente” (Curso de processo civil. v. 1, p. 507).