Nos últimos dias, repercute no ambiente acadêmico e na imprensa em geral uma importante decisão proferida pelo ministro Marco Aurélio Bellizze, do Superior Tribunal de Justiça, proferida no Conflito de Competência 185.702-DF.
O caso é muito interessante e merece registro.
Alguns acionistas minoritários de uma companhia instauraram arbitragem para nela veicular, com fundamento no artigo 246 da Lei das S.A., pretensão contra seus controladores, a fim de demandar a reparação de alegados prejuízos por eles acarretados. Outros acionistas minoritários instauraram outra arbitragem com a mesma finalidade, tendo ambas sido reunidas para processamento e julgamento conjunto pelo mesmo tribunal arbitral. Em tal arbitragem conjunta, a companhia interveio, mas não participou da escolha dos membros do tribunal.
Posteriormente, diante de autorização dada em assembleia geral, a companhia instaurou arbitragem contra ex-administradores seus e, igualmente, contra seus controladores, também para postular a reparação de prejuízos por eles causados, fundamentando-se nos artigos 159 e 246 da Lei das S.A. Formou-se, então, um segundo tribunal arbitral.
Os dois diferentes tribunais arbitrais foram instaurados na mesma câmara arbitral.
Os acionistas atuam, na primeira arbitragem, em substituição processual. São legitimados extraordinários da companhia; postulam, em nome próprio, direito dela. Por sua vez, a companhia, na segunda arbitragem, atua como legitimada ordinária, postulando seu próprio direito.
A companhia requereu ao primeiro tribunal arbitral — que conduz, em conjunto, as duas arbitragens propostas por acionistas — a extinção daquelas duas arbitragens, pela perda superveniente de legitimidade extraordinária e do interesse de agir dos acionistas minoritários, diante da instauração de arbitragem por ela, detentora da legitimidade ordinária.
O primeiro tribunal arbitral indeferiu o pedido de extinção formulado pela companhia, por entender não haver a perda superveniente da legitimidade extraordinária ou do interesse de agir dos acionistas minoritários, devendo sujeitar-se à coisa julgada que vier a se formar no julgamento conjunto daquelas duas arbitragens.
Já o segundo tribunal arbitral reconheceu a prevalência da arbitragem por ele processada, diante do exercício da legitimidade ordinária pela companhia, sendo certo que a sentença arbitral que vier a proferir produzirá coisa julgada, vinculando a companhia, seus acionistas, ex-administradores e os controladores, devendo ser respeitada.
Há, portanto, um evidente conflito positivo de competência entre dois tribunais arbitrais, instaurados na mesma câmara arbitral. Cada um entende ser o competente para a disputa ali instaurada, com manifestação expressa de que sua respectiva sentença haverá de prevalecer sobre a outra. Exatamente por isso, foi instaurado o CC 185.702-DF no STJ, distribuído à sua 2ª Seção, tendo como relator do ministro Marco Aurélio Bellizze.
Como bem esclarecido pelo ministro Bellizze, o conflito de competência entre tribunais arbitrais diversos deve ser julgado pelo STJ.
O tribunal, ao julgar o CC 111.230-DF, reconheceu a natureza jurisdicional da arbitragem, deixando assentado que “[a] atividade desenvolvida no âmbito da arbitragem tem natureza jurisdicional, sendo possível a existência de conflito de competência entre juízo estatal e câmara arbitral”[1]-[2].
No julgamento do CC 113.260-SP, o STJ entendeu, contudo, que “o conflito de competência supostamente ocorrido entre câmaras de arbitragem deve ser dirimido no Juízo de primeiro grau, por envolver incidente que não se insere na competência do Superior Tribunal de Justiça, conforme os pressupostos e alcance do art. 105, I, alínea ‘d’, da Constituição Federal”[3].
O ministro Bellizze, em sua decisão, invoca o precedente do STJ firmado no julgamento do CC 111.230-DF e dialoga, adequadamente, com suas razões de decidir, em cumprimento aos deveres de uniformidade, de estabilidade, de coerência e de integridade da jurisprudência (CPC, artigo 926). O diálogo com os precedentes atendeu, de igual modo, ao dever de autorreferência[4].
Se a arbitragem tem natureza jurisdicional e se cabe conflito de competência entre tribunal arbitral e juízo estatal, a ser julgado pelo STJ, coerentemente, também cabe conflito de competência entre tribunais arbitrais. Não há diferença, nesse sentido, entre um tribunal arbitral e um juízo estatal: ambos exercem jurisdição, cabendo ao STJ dirimir conflito de competência entre tribunais diversos que exercem jurisdição. Com isso, mantém-se a uniformidade da jurisprudência, mantendo-a estável, íntegra e, também, coerente com as razões de decidir do CC 111.230-DF.
Na sua decisão, o ministro Bellizze também invocou o julgamento proferido no CC 113.260-SP e fez, adequadamente, a devida distinção[5].
O caso decidido pelo ministro Bellizze difere daquele julgado pelo STJ no CC 113.260-SP. É preciso observar que, no caso do CC 113.260-SP, houve uma arbitragem instaurada numa câmara, com posterior desistência. Diante da desistência, foi instaurada outra arbitragem perante câmara arbitral diversa. Durante o processamento desta segunda arbitragem, aquela primeira câmara entendeu que ainda mantinha competência para processar e julgar o caso. Houve, então, duas arbitragens, cada uma instaurada perante uma câmara diversa. E a discussão envolvia a interpretação da convenção de arbitragem. O STJ, ao julgar o CC 113.260-SP, entendeu que não cabe conflito de competência para decidir sobre a correta interpretação a ser dada a determinada cláusula arbitral, faltando-lhe competência para decidir a esse respeito.
Em suma, a ratio decidendi do CC 113.260-SP reside na ausência de conflito de competência a ser julgado pelo STJ quando a discussão envolva interpretação de cláusula arbitral, cabendo tal atribuição a um juízo estatal de primeira instância. O caso envolvia, ademais, o conflito entre tribunais arbitrais de câmaras arbitrais diferentes.
Comparando aquele caso com o que está sob a relatoria do ministro Bellizze, observa-se que os tribunais arbitrais integram a mesma câmara arbitral, que não tem, em seu regulamento, mecanismo para solução do conflito instaurado entre os juízos arbitrais. O conflito de competência, no caso, não se resolve por interpretação de cláusula arbitral, mas por configuração de litispendência, de conexão ou de continência, bem como por prevalência da legitimidade ordinária frente à extraordinária e, bem ainda, por direito de escolha dos componentes do painel arbitral.
Feita a distinção, conclui-se, fundamentadamente, que, se o tribunal arbitral exerce jurisdição e se o conflito entre ele e um juízo estatal há de ser resolvido pelo STJ, um conflito entre tribunais arbitrais, integrantes da mesma câmara, também deve ser resolvido pelo STJ. A este cabe, nos termos do artigo 105, I, d, da Constituição, processar e julgar, originariamente, os conflitos de competência entre quaisquer tribunais. Os tribunais arbitrais inserem-se no contexto de quaisquer tribunais, por serem órgãos que exercem jurisdição e solucionam disputas de modo heterocompositivo, de forma adjudicatória.
Cabe ao STJ resolver esse interessante conflito. Os tribunais arbitrais proferiram decisões diametralmente opostas e inconciliáveis entre si, a configurar um inegável conflito de competência, que precisa ser resolvido, sobretudo por não haver, no caso, regulamentação na respectiva câmara arbitral a respeito da solução de tal conflito. E a questão não é simples. Há discussão sobre aplicação de regras de litispendência, conexão ou continência, que exigem uma adaptação na arbitragem. É a arbitragem decorre de convenções firmadas entre as partes e, em seu âmbito, é fundamental o direito de escolha dos árbitros pelas partes envolvidas. A arbitragem, como atividade jurisdicional, submete-se às garantias constitucionais do processo e o juiz natural —uma das principais garantias fundamentais — é respeitado com a possibilidade de as partes envolvidas escolherem os árbitros que devem compor o painel arbitral. É, em outras palavras, descabido impor a uma das partes o julgamento por um tribunal arbitral sem que se lhe confira a oportunidade de participar da escolha de seus integrantes. Essa é uma circunstância a ser ponderada no conflito de competência a ser julgado pelo STJ.
Outra questão bastante relevante a ser enfrentada pelo STJ, em tal caso, reside na prevalência da demanda proposta pelo substituto processual, a impedir que o substituído exerça diretamente seu direito de ação, ou na prevalência da legitimidade ordinária frente à extraordinária. Segundo clássica lição de Barbosa Moreira, a intervenção do legitimado ordinário desloca o legitimado extraordinário da posição de parte principal para a de parte acessória, convertendo-o de autor ou de réu em assistente, sendo irrelevante a circunstância de o substituto processual ter proposto a demanda antes, pois “a posição que compete a alguém no processo não deve depender do momento em que começa a participação dele, mas das relações entre a sua situação subjetiva e a situação jurídica objeto do juízo”[6].
Os acionistas propuseram demanda apenas contra os controladores, não precisando, para tanto, aguardar a realização de assembleia geral. A companhia, por sua vez, propôs demanda não apenas contra os controladores, mas também contra os ex-administradores. Para propor contra estes últimos, precisava aguardar autorização assemblear. A instrução probatória deve ser única: tanto a pretensão contra os controladores como aquela proposta contra os ex-administradores fundam-se nos mesmos fatos. O ideal seria reunir os processos arbitrais, mas isso não é possível, pois a companhia, a quem se confere legitimidade ordinária, tem o direito de escolher os integrantes do seu painel arbitral.
A arbitragem instaurada pelos acionistas não contém pretensão formulada pelos ex-administradores. A pretensão da segunda arbitragem, instaurada pela companhia, é mais abrangente, devendo, portanto, prosseguir em detrimento da primeira arbitragem
Cabe, enfim, ao STJ resolver esse interessante conflito. Os tribunais arbitrais proferiram decisões diametralmente opostas e inconciliáveis entre si, a configurar um inegável conflito de competência, que precisa ser resolvido, sobretudo por não haver, no caso, regulamentação na respectiva câmara arbitral a respeito da solução de tal conflito. Há, como se vê, de prevalecer a segunda arbitragem, instaurada contra os controladores e, igualmente, contra os ex-administradores, pelo legitimado ordinário, seja porque a companhia é a titular do direito em disputa, seja porque tem o direito a participar da formação do tribunal arbitral, seja porque a arbitragem que instaurou tem objeto mais amplo que a outra, instaurada anteriormente.
[1] STJ, 2ª Seção, CC 111.230/DF, rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 3.4.2014.
[2] Sobre a natureza jurídica da arbitragem, prevalece o entendimento de que a arbitragem ostenta cariz jurisdicional (VALENÇA FILHO, Clávio de Melo. Poder Judiciário e sentença arbitral. Curitiba: Juruá, 2002. p. 48-50; CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à Lei n. 9.307/96. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 46). Trata-se de jurisdição exercida por particulares, com autorização do Estado e em decorrência do exercício do direito fundamental de autorregramento da vontade (DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. 24ª ed. Salvador: JusPodivm, 2022, v. 1, p. 231-236).
[3] STJ, 2ª Seção, CC 113.260-SP, rel. Min. Nancy Andrighi, rel. p/ acórdão Min. João Otávio de Noronha, DJe 7.4.2011.
[4] Sobre a autorreferência como dever específico de fundamentação: MACÊDO, Lucas Buril de. Precedentes judiciais e o direito procesual civil. 3ª ed. Salvador: JusPodivm, 2019, n. 5.3.1, p. 215-217.
[5] A distinção é dividida em duas operações: a distinção dentro do caso e a distinção entre casos (DUXBURY, Neil. The nature and authority of precedent. Cambridge: Cambridge University Press, 2008, p. 113). Ambas foram feitas adequadamente na decisão do Ministro Bellizze.
[6] MOREIRA, José Carlos Barbosa. Apontamentos para um estudo sistemático da legitimação extraordinária, Direito processual civil: ensaios e pareceres. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, p. 65.