Nos termos do art. 5º, LIV, da Constituição Federal, “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. É necessária, portanto, obediência ao devido processo legal, daí se extraindo o princípio do contraditório, previsto no inciso LV do art. 5º da Constituição Federal, segundo o qual ninguém poderá ser atingido por uma decisão judicial, sem ter a possibilidade de influir na sua formação em igualdade de condições com a parte contrária.
Tais disposições constitucionais, em outras palavras, garantem que não haverá perdimento de bens nem da liberdade, sem que haja decisão judicial, proferida num procedimento adequado, com obediência às regras processuais; enfim, somente haverá tais perdas, se obedecido o devido processo legal e respeitados o contraditório e a ampla defesa.
O contraditório, em sua versão tradicional, era mais restritivo, pois se limitava a impor a cientificação das partes acerca dos atos processuais e a obediência à bilateralidade de audiência.
Enfim, o princípio do contraditório deveria compreender: (a) o direito de ser ouvido; (b) o direito de acompanhar os atos processuais; (c) o direito de produzir provas; (d) o direito de ser informado regularmente dos atos praticados no processo; (e) o direito à motivação das decisões; (f) o direito de impugnar as decisões. Para que tudo se realizasse, seria preciso a ciência das partes.
A noção inicial e mínima do contraditório relaciona-se, como se percebe, com a tempestiva ciência das partes sobre os atos processuais. Segundo assinala Federica Dotti, com apoio nas lições de Luigi Paolo Comoglio, a efetividade do direito de defesa pressupõe a concreta e tempestiva ciência do tempo, da forma e do modo que o ordenamento confere a determinados sujeitos de participarem ativamente do processo. Quer isto dizer que as formas de comunicação e notificação, previstas na legislação processual, devem constantemente garantir as melhores condições de ciência dos atos a seus destinatários, não se admitindo a pura e simples presunção de eventual cientificação[1].
O contraditório, atualmente, tem uma dimensão maior, passando a ostentar uma noção mais ampla de contraditoriedade. Tal noção deve ser entendida como garantia de efetiva participação das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de influírem, em igualdade de condições, no convencimento do magistrado, contribuindo na descrição dos fatos, na produção de provas e no debate das questões de direito[2].
O contraditório não é necessário apenas para a prolação da sentença de mérito. Ele deve ser observado ao longo de todo o procedimento, relativamente a todas as questões, sejam de rito ou de mérito[3]. Ao longo de todo o procedimento há questões a serem enfrentadas. Para examinar e decidir sobre cada uma delas, deve o juiz instaurar o contraditório prévio.
Às partes deve-se conferir oportunidade de, em igualdade de condições, participar do convencimento do juiz. O contraditório guarda estreita relação com o princípio da isonomia, exatamente porque as partes devem dispor da possibilidade de expor suas versões, apresentar suas defesas e participar, enfim, do processo em idênticas oportunidades[4].
Significa que a principal finalidade do contraditório deixou de ser a apresentação de defesa pelo réu, para passar a ser a influência no desenvolvimento e no resultado do processo[5], razão pela qual constitui direito não só do réu, mas também do autor. O contraditório constitui expressão da participação: todo poder, para ser legítimo, deve permitir a participação de quem poderá ser atingido com seu exercício.
O juiz também é sujeito do contraditório. Este não concerne apenas às partes, mas também ao juiz. O contraditório não se resume à defesa do réu, alcançando todos os sujeitos do processo. O direito à ampla defesa do réu integra o contraditório em seu aspecto substancial. Em outras palavras, o direito de defesa é conteúdo do contraditório, sendo apenas um de seus aspectos[6].
Para que haja participação e exercício do direito de defesa, é preciso que se efetive a informação prévia e a possibilidade de reação.
Na verdade, o princípio do contraditório constitui uma necessidade inerente ao procedimento, ostentando a natureza de direito inviolável em todos os seus estágios e graus, como condição de paridade entre as partes[7]. Um procedimento em que não se assegure o contraditório não é um procedimento jurisdicional; poderá ser uma sequência de atos, mas não um procedimento jurisdicional, nem mesmo um processo[8]. Com efeito, não seria um processo civil aquele procedimento em que se conceda audiência a apenas uma das partes, se bem que seja suficiente dar a todas elas a simples oportunidade do contraditório, não sendo necessário que haja efetiva manifestação[9].
A obediência ao princípio do contraditório constitui garantia da imparcialidade do juiz. O magistrado que não confere audiência a ambas as partes e, de resto, não cumpre o primado do contraditório já terá, somente por isso, cometido uma parcialidade, por não haver investigado senão a metade do que poderia verificar[10].
Em virtude da atual dimensão conferida ao contraditório, o juiz deve submeter a debate entre as partes as questões jurídicas, aí incluídas as matérias que ele há de apreciar de ofício[11]. Realmente, o exercício pleno do contraditório não se limita à garantia de alegação oportuna e eficaz a respeito de fatos, implicando a possibilidade de ser ouvido também em matéria jurídica[12].
Assim, por exemplo, se ao juiz a parte aparenta ser ilegítima ou a norma invocada parece-lhe inconstitucional, mas não houve qualquer discussão ou debate sobre o assunto, cumpre-lhe, antes de se pronunciar a respeito, determinar a intimação das partes para que se manifestem sobre tal matéria. Ainda que lhe caiba examinar o assunto de ofício, impende conferir às partes a oportunidade de colaborar com a formação do seu convencimento, influenciando, desse modo, na decisão a ser tomada[13].
Essa participação confere maior legitimidade à decisão, evitando, inclusive, a existência de surpresa: as partes não serão surpreendidas com decisão que trate de matéria a respeito da qual não houve prévio debate, nem sobre a qual deixaram dar sua contribuição[14].
É preciso observar o contraditório, a fim de evitar um “julgamento surpresa”. E, para evitar “decisões surpresa”, toda questão submetida a julgamento deve passar antes pelo contraditório. Quer isso dizer que o juiz tem o dever de provocar, preventivamente, o contraditório das partes, ainda que se trate de uma questão que possa ser conhecida de ofício, ou de uma presunção simples. Se a questão não for submetida ao contraditório prévio, as partes serão surpreendidas com decisão que terá fundamento numa questão que não foi objeto de debate prévio, não lhes tendo sido dada oportunidade de participar do convencimento do juiz. A decisão, nesse caso, não será válida, faltando-lhe legitimidade, haja vista a ausência de participação dos litigantes na sua elaboração.
Daí se impor uma releitura à aplicação da máxima iura novit curia, segundo a qual constituiria tarefa privativa do juiz a aplicação do direito independentemente da sua arguição pelas partes, cabendo a estas últimas apenas a alegação dos fatos. Vale dizer que a máxima iura novit curia há de ser interpretada conforme o princípio constitucional do contraditório, concretizando a finalidade de evitar surpresas de frustrar as expectativas legítimas causadas às partes.
De acordo com o Supremo Tribunal Federal brasileiro, “Assegurada pelo constituinte nacional, a pretensão à tutela jurídica envolve não só o direito de manifestação e o direito de informação sobre o objeto do processo, mas também o direito de ver seus argumentos contemplados pelo órgão julgador”[15].
Além do mais, o princípio do contraditório tem um conteúdo mínimo, sendo necessária a intimação para manifestação sobre questão jurídica apresentada no curso do procedimento, desaguando na indispensável apreciação de todas as razões de defesa, ainda que não haja lei em tal sentido[16].
O processo, para ser efetivo, deve ser estruturado de forma dialética, atendendo ao princípio do contraditório, em virtude do qual o processo há de ser participativo. E nem poderia ser diferente, porquanto a participação, própria do contraditório, é inerente ao regime democrático. Na lição de Cândido Rangel Dinamarco:
“A participação é que legitima todo processo político e o exercício do poder. Para a efetividade do processo, colocada em termos de valor absoluto, poderia parecer ideal que o contraditório fosse invariavelmente efetivo: a dialética do processo, que é fonte de luz sobre a verdade procurada, expressa-se na cooperação mais intensa entre o juiz e os contendores, seja para a descoberta da verdade dos fatos que não são do conhecimento do primeiro, seja para o bom entendimento da causa e dos seus fatos, seja para a correta compreensão das normas de direito e apropriado enquadramento dos fatos nas categorias jurídicas adequadas. O contraditório, em suas mais recentes formulações, abrange o direito das partes ao diálogo como o juiz: não basta que tenham aquelas a faculdade de ampla participação, é preciso que também este participe intensamente, respondendo adequadamente aos pedidos e requerimentos das partes, fundamentando decisões e evitando surpreendê-las com decisões de-ofício inesperadas.”[17]
A composição participativa é, como se vê, inerente a qualquer processo, o que revela seu objetivo político. Para que se concretize o contraditório no processo, é preciso que se possibilite a participação das partes litigantes na atividade processual, na coleta de provas e no convencimento do juiz, a fim de que se obtenha um resultado justo, fruto de ampla colaboração.
O princípio do contraditório não se resume, já se disse, na sua compreensão como direito de informação e reação, ou como direito de influência. A participação propiciada pelo contraditório serve não apenas para que cada litigante possa influenciar a decisão, mas também para viabilizar a colaboração das partes com o exercício da atividade jurisdicional.
Significa que, em razão do contraditório, a atividade jurisdicional deve pautar-se num esquema dialógico, de modo a exigir que o juiz exerça a jurisdição com o auxílio das partes, proferindo decisão legítima, aprimorada e justa. A decisão judicial não deve ser fruto de um trabalho exclusivo do juiz, mas resultado de uma atividade conjunta, em que há interações constantes entre diversos sujeitos que atuam no processo.
A colaboração e a participação das partes não se configuram apenas como direitos ou faculdades, mas também como ônus[18] e deveres. Em outras palavras, às partes confere-se oportunidade de participar da formação da decisão do juiz, suportando as consequências desfavoráveis do próprio comportamento inerte e negligente. O juiz não pode ser obrigado a inserir na fundamentação de sua decisão considerações, informações ou detalhes que não foram apresentados pelas partes.
Em razão do princípio da cooperação, o juiz deixa de ser o autor único e solitário de suas decisões. A sentença e, de resto, as decisões judiciais passam a ser fruto de uma atividade conjunta.
A aplicação do princípio da cooperação acarreta um redimensionamento da máxima iura novit curia, porquanto ao juiz cabe pronunciar-se sobre a norma jurídica a ser aplicada ao caso depois de realizar o necessário diálogo com as partes[19]. Ao juiz cabe – não restam dúvidas – aplicar o direito ao caso concreto, mas se lhe impõe, antes de promover tal aplicação, consultar previamente as partes, colhendo suas manifestações a respeito do assunto.
Na verdade, o princípio da cooperação restringe a passividade do juiz, afastando-se da ideia liberal do processo como uma “luta” ou “guerra” entre as partes, meramente arbitrada pelo juiz[20].
No Brasil, não há previsão legal do princípio da cooperação, mas ele tem base constitucional, sendo extraído da cláusula geral do devido processo legal, bem como do princípio do contraditório. Se o contraditório exige participação e, mais especificamente, uma soma de esforços para melhor solução da disputa judicial, o processo realiza-se mediante uma atividade de sujeitos em cooperação.
Na legislação portuguesa, o princípio da cooperação está expressamente previsto. Ao estabelecer as bases da reforma processual, a Lei nº 33/95, em seu art. 6º, determinou que:
“As alterações à lei processual deverão consagrar o dever de cooperação para descoberta da verdade, a par da necessidade de uma adequada ponderação, em termos de proporcionalidade, eticamente fundada, entre o direito à reserva da intimidade da vida privada e a obtenção da verdade material e os direitos e interesses da contraparte (…).”
Consagrando a cooperação como princípio ordenador do processo civil, o artigo 266º, n. 1, do CPC português assim dispõe: “Na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio”.
Em seu n. 2, o referido dispositivo estabelece que
“O juiz pode, em qualquer altura do processo, ouvir as partes, seus representantes ou mandatários judiciais, convidando-os a fornecer os esclarecimentos sobre a matéria de facto ou de direito que se afigurem pertinentes e dando-se conhecimento à outra parte dos resultados da diligência”.
Por sua vez, o n. 3 do dispositivo dispõe que: “As pessoas referidas no número anterior são obrigadas a comparecer sempre que para isso forem notificadas a prestar os esclarecimentos que lhes forem pedidos, sem prejuízo do disposto no nº 3 do art. 519º”. E, finalmente, seu n. 4 assim determina:
“Sempre que alguma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual, deve o juiz, sempre que possível, providenciar pela remoção ou obstáculo.”
A cooperação, como se percebe, impõe deveres para todos os intervenientes processuais, a fim de que se produza, no âmbito do processo civil, uma “eticização” semelhante à que já se obteve no direito material, com a consagração de cláusulas gerais como as da boa fé e do abuso de direito[21].
O princípio da cooperação destina-se, enfim, a transformar o processo civil numa “comunidade de trabalho”[22], potencializando o franco diálogo entre todos os sujeitos processuais, a fim de se alcançar a solução mais adequada e justa ao caso concreto[23]. O processo, diante disso, deve ser entendido como uma “comunidade de comunicação”, desenvolvendo-se por um diálogo pelo qual se permite uma discussão a respeito de todos os aspectos de fato e de direito considerados relevantes para a decisão da causa[24].
Ao longo de todo o procedimento, deve haver um debate, voltando-se também para o juiz e para todos os agentes estatais no processo.
Da cooperação, cujo fundamento é, em última análise, o princípio do contraditório, extraem-se deveres a serem cumpridos pelo juiz e pelas partes, sendo certo que os deveres processuais subtraem do direito de ação qualquer natureza absoluta, constituindo uma limitação ao seu exercício[25].
Há, na verdade, a cooperação das partes com o tribunal, bem como a cooperação do tribunal com as partes[26].
A cooperação das partes com o tribunal envolve:
a) a ampliação do dever de litigância de boa fé[27];
b) o reforço do dever de comparecimento e prestação de quaisquer esclarecimentos que o juiz considere pertinentes e necessários para a perfeita inteligibilidade do conteúdo de quaisquer peças processuais apresentadas;
c) o reforço do dever de comparecimento pessoal em audiência[28], com a colaboração para a descoberta da verdade[29]; e,
d) o reforço do dever de colaboração com o tribunal, mesmo quando este possa envolver quebra ou sacrifício de certos deveres de sigilo ou confidencialidade (CPC português, arts. 519º e 519º-A)[30].
Por sua vez, a cooperação do tribunal com as partes comporta[31]:
a) a consagração de um poder-dever de o juiz promover o suprimento de insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de fato alegada por qualquer das partes;
b) a consagração de um poder-dever de suprimir obstáculos procedimentais à prolação da decisão de mérito;
c) a consagração do poder-dever de auxiliar qualquer das partes na remoção de obstáculos que as impeçam de atuar com eficácia no processo; e,
d) a consagração, em combinação com o princípio do contraditório, da obrigatória discussão prévia com as partes da solução do pleito, evitando a prolação de “decisões-surpresa”, sem que as partes tenham oportunidade de influenciar as decisões judiciais.
O tribunal tem, enfim, o dever de esclarecimento, o dever de prevenção, o dever de consulta e o dever de auxílio. Realmente, o tribunal tem o dever de se esclarecer junto das partes e estas têm o dever de o esclarecer[32]. Significa que o dever de esclarecimento é recíproco. Já o dever de prevenção não é recíproco, consistindo no convite, feito pelo tribunal, ao aperfeiçoamento pelas partes de suas petições ou alegações. Segundo leciona Miguel Teixeira de Sousa, o dever de prevenção tem um âmbito mais amplo:
“… ele vale genericamente para todas as situações em que o êxito da acção a favor de qualquer das partes possa ser frustrado pelo uso inadequado do processo. São quatro as áreas fundamentais em que a chamada de atenção decorrente do dever de prevenção se justifica: a explicitação de pedidos pouco claros, o carácter lacunar da exposição dos factos relevantes, a necessidade de adequar o pedido formulado à situação concreta e a sugestão de uma certa actuação. Assim, por exemplo, o tribunal tem o dever de sugerir a especificação de um pedido indeterminado, de solicitar a individualização das parcelas de um montante que só é globalmente indicado, de referir as lacunas na descrição de um facto, de se esclarecer sobre se a parte desistiu do depoimento de uma testemunha indicada ou apenas se esqueceu dela e de convidar a parte a provocar a intervenção de um terceiro”[33].
O dever de consulta, por sua vez, impõe ao tribunal dar às partes a oportunidade de manifestação sobre qualquer questão de fato ou de direito. O juiz, antes de se pronunciar sobre qualquer questão, ainda que seja de conhecimento oficioso, deve dar oportunidade à prévia discussão pelas partes, evitando, desse modo, as chamadas “decisões surpresa”[34].
Finalmente, o tribunal tem o dever de auxiliar as partes na eliminação ou superação de obstáculos ou dificuldades que impeçam o exercício de direitos ou faculdades ou, ainda, o cumprimento de ônus ou deveres processuais. Deve, por exemplo, o juiz providenciar a remoção de obstáculo à obtenção de um documento ou informação que seja indispensável para a prática de um ato processual[35].
Há, na verdade, um dever de cooperação. O dever de cooperação, nas lições de José Lebre de Freitas, tem duplo sentido: um material e um formal. Em seu sentido material, o dever de cooperação recai sobre as partes, incumbindo-lhes a prestação de sua colaboração para a descoberta da verdade; ao juiz cumpre requisitar das partes esclarecimentos sobre a matéria de fato ou sobre a matéria de direito da causa. Em seu sentido formal, o dever de cooperação impõe ao juiz providenciar o suprimento de obstáculos na obtenção de informação ou documento necessário ao exercício de uma faculdade, à observância de um ônus ou ao cumprimento de um dever processual[36].
O princípio do contraditório, tal como previsto no art. 5º, LV, da Constituição Federal, tem aplicação a qualquer processo judicial. Vale dizer que tal princípio aplica-se ao processo de conhecimento, ao processo de execução e ao processo cautelar.
É óbvio que o princípio do contraditório não se aplica na execução com a mesma intensidade que incide no processo de conhecimento, mas é induvidosa sua aplicação na execução. Na execução, tanto o exeqüente como o executado têm direito de ser cientificados dos atos processuais. As partes, na execução, podem recorrer dos pronunciamentos judiciais. Em eventual questão a ser enfrentada pelo juiz, devem as partes ser intimadas para manifestar-se, contribuindo com o convencimento do magistrado, em atividade tipicamente cooperativa. O contraditório no procedimento executivo, no aspecto do direito de defesa assegurado à parte demandada, é eventual, porquanto depende da provocação do executado, que não é chamado a juízo para defender-se, mas sim para cumprir a obrigação. O procedimento executivo adota a técnica monitória, que consiste, basicamente, na inversão do ônus de provocar o contraditório: o réu, em vez de citado para manifestar-se sobre a pretensão do autor, é convocado para cumprir uma determinada obrigação. Não é correto dizer, então, que não há contraditório no procedimento executivo: ele é previsto, até mesmo como conseqüência da garantia constitucional, mas é eventual na parte concernente à defesa do executado. É inegável a existência de contraditório na execução.
O contraditório há de ser prévio. Antes de proferir qualquer decisão, deve o julgador consultar previamente as partes, permitindo que estas contribuam com a formação de seu convencimento.
Ocorre, não raras vezes, que o caso submetido ao exame do juiz põe a descoberto uma situação de extrema gravidade e urgência, não havendo tempo para se instaurar o prévio contraditório, sob pena de suprimir do provimento jurisdicional a efetividade que dele possa resultar. Nesse caso, e para garantir a efetividade do comando judicial postulado, poderá o juiz, imediatamente, deferir o pedido formulado pela parte, dispensando o prévio contraditório, desde que se verifique a relevância do fundamento e a urgência da medida pretendida.
Em hipóteses como essa, estará havendo uma ponderação de princípios. De um lado, há o princípio do contraditório e, de outro lado, o da efetividade dos provimentos judiciais. Tal ponderação há de ser feita mediante a aplicação do postulado da proporcionalidade.
Ora, se, de um lado, há um dispositivo constitucional exigindo a obediência ao princípio do contraditório (CF/88, art. 5º, LV), exsurge, por sua vez, outro dispositivo constitucional que garante a efetividade da tutela jurisdicional, ao assegurar o livre acesso para evitar qualquer lesão ou ameaça a direito (CF/88, art. 5º, XXXV).
Avulta, como se observa, um conflito entre a exigência constitucional do contraditório e o princípio da efetividade da tutela jurisdicional. Com efeito, tomando-se na devida conta o princípio do contraditório, deve-se conferir às partes a oportunidade de tentar contribuir com o convencimento do magistrado, trazendo argumentos e elementos que demonstrem a correção de sua tese e a necessidade de se rejeitar a pretensão da parte contrária. Por outro lado, a obediência ao contraditório não poderia chegar ao ponto de subtrair da prestação jurisdicional a efetividade garantida pelo mesmo texto constitucional, fazendo com que pereça o direito da parte, que precisa de um provimento de urgência destinado a conferir penhor e efetividade à sua postulação.
Segundo anota Daniel Sarmento, não há, no sistema brasileiro, hierarquia de normas constitucionais, não sendo legítimo entender que uma norma constitucional seja inconstitucional[37]. Logo, não se poderia entender que a exigência do contraditório teria mais validade do que a garantia de efetividade dos provimentos judiciais, nem que um seria inconstitucional frente ao outro. Enfim, esse não poderia ser o critério para solucionar o conflito ora denunciado.
A solução, ao que parece, resulta da aplicação do postulado da proporcionalidade, cabendo ponderar os princípios em conflito para, no caso concreto, verificar o que recebe maiores influxos do direito material ou o que sofrerá maior dano, caso venha a ter sua aplicação afastada.
Para que se aplique o postulado da proporcionalidade, é preciso que haja (a) adequação; (b) necessidade; e (c) proporcionalidade em sentido estrito. Assim, a apreciação de qualquer pedido depende, via de regra, do prévio contraditório. O afastamento da exigência do contraditório, com a apreciação imediata do pedido formulado pela parte, deve ocorrer em hipóteses de urgência na concessão da medida. Nesses casos em que se dispensa o prévio contraditório, a parte não fica impossibilitada de se manifestar. Na verdade, o contraditório fica diferido para o momento posterior à apreciação do pedido formulado.
O princípio do contraditório decorre, enfim, do devido processo legal, dele se extraindo (a) a necessidade de se dar ciência às partes dos atos a serem realizados no processo e das decisões ali proferidas e (b) a necessidade de conferir oportunidade à parte de contribuir com o convencimento do juiz ou tribunal.
Além da bilateralidade de audiência e de igualdade de oportunidades, o contraditório deve instaurar um diálogo no processo entre o juiz e as partes, garantindo uma atividade verdadeiramente dialética, com que se assegura a prolação de uma decisão justa e, de resto, de um procedimento justo.
[1] DOTTI, Federica. Diritti della difesa e contraddittorio: garanzia di un giusto processo? Spunti per una riflessione comparata del processo canonico e statale. Roma: Editrice Pontificia Università Gregoriana, 2005, p. 173.
[2] Na fase mais recente da ciência processual, há uma diversa concepção nos confrontos entre o princípio do contraditório e o processo. O processo não é outra coisa senão o juízo e a formação do juízo. Tornou-se interesse do jurista investigar os mecanismos de formação do juízo e, antes de tudo, o contraditório e a colaboração das partes na busca da verdade. O contraditório, a partir daí, passou a ostentar importância central no estudo do processo, sendo erigido à garantia constitucional. A defesa em juízo é, em primeiro lugar, garantia do contraditório e a igualdade de armas assume o valor de condição de legitimidade constitucional da norma processual. Com isso, não se postula a absoluta identidade entre os poderes das partes, mas se objetiva evitar injustificáveis diferenças de tratamento (PICARDI, Nicola. Il principio del contraddittorio. Rivista di Diritto Processuale. Padova: CEDAM, 1998, n. 3, p. 678).
[3] FAZZALARI, Elio. La sentenza in rapporto alla struttura e all’oggetto del processo. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile. Milano: Giuffrè, giugno 1986, n. 2, p. 431.
[4] LLOBREGAT, José Garberí. Constitución y derecho procesal: los fundamentos constitucionales del derecho procesal. Navarra: Thomson Reuters Aranzadi, 2009, p. 307-309.
[5] TROCKER, Nicolò. Processo civile e costituzione: problemi di diritto tedesco e italiano. Milano: Giuffrè, 1974, p. 369-371.
[6] “É possível dizer que o contraditório exterioriza a defesa, ou que a defesa é o fundamento do contraditório. Porém, tais conceitos, ainda que corretos, são incompletos, uma vez que o direito de ação também necessita do contraditório. A confusão certamente deriva da circunstância de que a defesa, para ser exercida em sua fase inicial, isto é, diante da petição inicial apresentada pelo autor, requer a efetivação do contraditório, que tecnicamente pressupõe informação e possibilidade de reação (na generalidade dos casos). Ou seja, relaciona-se defesa com contraditório porque o réu necessita ser informado e ter a sua disposição os meios técnicos (prazo adequado, advogado) capazes de lhe permitir a reação.” (MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. São Paulo: RT, 2006 p. 313-314).
[7] VERDE, Giovanni. Profili del processo civile. 6ª ed. Napoli: Jovene, 2002, v. 1, p. 106.
[8] NICOLETTI, Carlo Alberto. Profili istituzionali del processo civile. 2ª ed. Milano: Giuffrè, 2003, p. 7.
[9] SCHÖNKE, Adolfo. Derecho procesal civil. Barcelona: Bosch, 1950, § 10, p. 46.
[10] ALONSO, Pedro Aragoneses. Proceso y derecho procesal (introduccion). 2ª ed. Madrid: Editoriales de Derecho Reunidas, 1997, p. 130.
[11] Daí por que o n. 3 do art. 3º do CPC português assim estabelece: “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
Observa-se que o dispositivo dispensa o contraditório em casos de “manifesta desnecessidade”, sem esclarecer que casos seriam esses. Segundo António Santos Abrantes Geraldes, são limitadas as situações em que se permite ao juiz decidir qualquer questão sem ouvir as partes: a) para indeferir qualquer nulidade invocada por uma das partes; b) em matéria de procedimentos cautelares, quando necessário prevenir a violação do direito ou garantir o resultado útil da demanda, destacando-se, ainda, uma específica hipótese de decretação de falência sem respeito ao contraditório prévio (Temas da reforma do processo civil. 2ª ed. Coimbra: Almedina, 2006, p. 82). Para José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, o contraditório prévio pode ser dispensado em procedimentos cautelares, na execução (em que a penhora é, em certos casos, realizada sem audiência prévia do executado), não devendo ter lugar o convite para discutir uma questão de direito, “quando as partes, embora não a tenham invocado expressamente nem referido o preceito legal aplicável, implicitamente a tiveram em conta sem sombra de dúvida, designadamente por ter sido apresentada uma versão fáctica não contrariada que manifestamente não consentia outra qualificação.” (Código de Processo Civil anotado. 2ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, v. 1, n. 4, p. 7, n. 9, p. 10).
[12] Conforme esclarece Armindo Ribeiro Mendes, o Tribunal Constitucional português, a propósito do princípio do contraditório, impôs a prévia audição dos interessados em caso de eventualidade de condenação de uma parte como litigante de má fé, procedendo uma interpretação conforme à Constituição dos arts. 456º, nºs 1 e 2, e 458º do Código de Processo Civil. (Constituição e Processo Civil. Estudos em memória do Conselheiro Luís Nunes de Almeida. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 553).
[13] Os antigos brocardos da mihi factum, dabo tibi ius e iura novit curia expressam, tradicionalmente, que às partes cabe apenas apresentar ao juízo os fatos, cabendo a este examinar o direito aplicável ao caso. Embora caiba ao juiz analisar e aplicar o direito à espécie, impõe-se-lhe colher, sempre, a manifestação prévia das partes, a quem se deve permitir contribuir com a formação do seu convencimento (TROCKER, Nicolò. Ob. cit., p. 640-647).
[14] Segundo Luigi Montesano, a garantia constitucional do contraditório certamente não elimina nem atenua o princípio fundamental iura novit curia, isto é, o poder-dever oficioso do juiz de individuar a norma aplicável em causa, não ficando vinculado à impostação da causa “em direito” por obra das partes. A garantia em debate incide, todavia, fortemente sobre o modo e o tempo do exercício daquele poder-dever e deveria conduzir, espera-se, a jurisprudência a mudar a linha de total liberdade de aplicação das normas jurídicas totalmente estranhas ao debate entre as partes. (La garantia costituzionale del contraddittorio e i giudizi civili di “terza via”. Rivista di Diritto Processuale. Padova, CEDAM, 2000, n. 4, p. 931).
[15] Acórdão unânime da 2ª Turma do STF, RMS 24.536/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 2/12/2003, DJ de 5/3/2004, p. 33.
[16] Sobre o conteúdo mínimo do princípio do contraditório, há vários precedentes do STF do Brasil, sendo oportuno mencionar, a título exemplificativo, o RE 431.121/SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 28/10/2004, p. 41.
[17] DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 1996, n. 36.2, p. 285.
[18] TROCKER, Nicolò. Processo civile e costituzione: problemi di diritto tedesco e italiano. Milano: Giuffrè, 1974, p. 667.
[19] TROCKER, Nicolò. Ob. cit., p. 683-684.
[20] REGO, Carlos Francisco de Oliveira Lopes do. Comentários ao Código de Processo Civil. Coimbra: Almedina, 2004, v. 1, p. 266.
[21] REGO, Carlos Francisco de Oliveira Lopes do. Ob. cit., p. 265.
[22] SOUSA, Miguel Teixeira de. Estudos sobre o novo processo civil. 2ª ed. Lisboa: Lex, 1997, p. 62.
[23] GERALDES, António Santos Abrantes. Temas da reforma do processo civil. 2ª ed. Coimbra: Almedina, 2006, v. 1, p. 88.
[24] SILVA, Paula Costa e. Acto e processo. cit., p. 578-579.
[25] SILVA, Paula Costa e. O processo e as situações jurídicas processuais. Teoria do processo: panorama doutrinário mundial. Fredie Didier Jr.; Eduardo Ferreira Jordão (coords.). Salvador: JusPodivm, 2008, p. 790-791.
[26] SOUSA, Miguel Teixeira de. Apreciação de alguns aspectos da “revisão do processo civil – projecto”. Revista da Ordem dos Advogados. Lisboa, ano 55, julho 1995, p. 361.
[27] SOUSA, Miguel Teixeira de. Estudos sobre o novo processo civil. Ob. cit., p. 62-63. REGO, Carlos Francisco de Oliveira Lopes do. Ob. cit., p. 266.
[28] REGO, Carlos Francisco de Oliveira Lopes do. Ob. cit., p. 267.
[29] SOUSA, Miguel Teixeira de. Estudos sobre o novo processo civil. Ob. cit., p. 64.
[30] REGO, Carlos Francisco de Oliveira Lopes do. Ob. cit., p. 266-267.
[31] REGO, Carlos Francisco de Oliveira Lopes do. Ob. cit., p. 267-269.
[32] SOUSA, Miguel Teixeira de. Estudos sobre o novo processo civil. Ob. cit., p. 65.
[33] Ob. cit., p. 66.
[34] SOUSA, Miguel Teixeira de. Ob. cit., p. 66-67.
[35] SOUSA, Miguel Teixeira de. Ob. cit., p. 67.
[36] Introdução ao processo civil: conceito e princípios gerais. 2ª ed. Cit., n. 8.2-8.3, p. 164-167.
[37] A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 37-38.