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30/04/2013 Artigo

Será o fim da categoria condições da ação? Uma intromissão no debate travado entre Fredie Didier Jr. e Alexandre Freitas Câmara

1.      Introdução

Por meio de mensagem eletrônica, o Professor Fredie Didier Jr. enviou-me texto de sua autoria, intitulado “Será o fim da categoria ‘condições da ação’? Um elogio ao projeto do novo CPC”, em que trata de nova ideia que se poderia, no seu entender, extrair de dispositivos contidos no projeto do novo Código de Processo Civil que versam sobre as condições da ação.

Depois de uma semana, o Professor Alexandre Freitas Câmara, que também fora destinatário da referida mensagem eletrônica, encaminhou-me eletronicamente – e, igualmente, ao Professor Didier Jr. – texto de sua autoria, intitulado “Será o fim da categoria ‘condição da ação’? Uma resposta a Fredie Didier Júnior”, em que se posiciona sobre o tema, oferecendo algumas discordâncias às opiniões manifestadas naquele primeiro texto, de autoria do Professor Fredie.

Interessei-me bastante pelo tema, que está compreendido no objeto de minha dissertação de mestrado, defendida há mais de dez anos. A dissertação foi publicada posteriormente[1]. Há alguns pontos do trabalho que foram por mim revisitados ao longo desses anos, tendo modificado minha opinião quanto a uns e mantido relativamente a outros.

Os detalhes da polêmica amistosamente travada entre os Professores Didier Jr. e Freitas Câmara repercutem em opiniões que manifestei naquele meu trabalho e que não foram modificadas ao longo desses anos.

Tomei, então, a iniciativa de me intrometer na discussão, com o objetivo de contribuir para o debate.

2.      Breve síntese da opinião de Fredie Didier Jr.

Na Introdução de seu texto, Fredie Didier Jr. lembra que as condições da ação, consagradas expressamente no inciso VI do art. 267 do atual Código de Processo Civil, consistem numa espécie de questão submetida à cognição judicial, que diz respeito à ação e se posiciona numa zona intermediária entre as questões de admissibilidade e as de mérito.

Ao examinar o texto do projeto do novo Código de Processo Civil, em tramitação no Congresso Nacional, Fredie constata a existência de duas omissões, das quais se podem extrair conclusões positivas, a merecerem elogio de sua parte.

Em primeiro lugar, não há mais a menção à “possibilidade jurídica do pedido”. A ausência de referência a essa condição da ação reforçaria um entendimento unânime, segundo o qual a impossibilidade jurídica do pedido não seria decisão de inadmissibilidade, mas sim de mérito. Realmente, o inciso VI do art. 472 do projeto do novo CPC, ao aludir à extinção do processo sem resolução do mérito, refere-se à ausência de legitimidade e de interesse processual, não mencionando mais a falta de possibilidade jurídica do pedido. De igual modo, o art. 305 do projeto do novo CPC, ao relacionar as hipóteses de indeferimento da petição inicial, não mais indica a impossibilidade jurídica do pedido, tal como o faz o inciso III do parágrafo único do art. 295 do atual CPC.

Diante disso, a possibilidade jurídica do pedido não seria mais uma condição da ação. Se o pedido for juridicamente impossível, deverá o juiz proferir sentença de improcedência, e não de carência de ação.

Já a segunda omissão contida no projeto do novo CPC diz respeito à falta, ao longo de todo o texto normativo, da expressão “condição da ação”, deixando de haver menção expressa à categoria “condição da ação”, o que autorizaria a conclusão de que a legitimidade de parte e o interesse de agir haveria de ser inseridos na categoria “pressupostos processuais”. O interesse passaria a ser um pressuposto de validade objetivo intrínseco, enquanto a legitimidade, um pressuposto de validade subjetivo relativo às partes.

De tal omissão poder-se-ia, ainda, extrair a interpretação, segundo Didier Jr., de que o reconhecimento da falta de legitimidade ordinária implicaria improcedência do pedido. O juízo de admissibilidade do procedimento somente ocorreria se houvesse falta de interesse ou de legitimidade extraordinária.

3.      Breve síntese da opinião de Alexandre Freitas Câmara

O Professor Alexandre Freitas Câmara concorda com o Professor Fredie Didier Jr. quanto ao elogio feito a respeito da eliminação da possibilidade jurídica do pedido como categoria autônoma. Discorda, entretanto, da conclusão segundo a qual o reconhecimento da impossibilidade jurídica do pedido deveria passar a ser tratada como sentença de improcedência. Isso porque, na sua opinião, a falta de possibilidade jurídica do pedido configura, na verdade, ausência de interesse de agir. Os exemplos de impossibilidade jurídica do pedido são, no entender do Professor Câmara, casos típicos de falta de interesse de agir.

Em favor da sua opinião, o Professor Freitas Câmara invoca a teoria da asserção, defendendo que a falta de possibilidade jurídica do pedido (ou de interesse de agir) seria examinada in statu assertionis. Se, todavia, for necessário examinar o acervo probatório para concluir pela impossibilidade jurídica do pedido, aí a questão seria, então, de mérito. Significa, então, que não haveria, segundo o Professor Freitas Câmara, a completa abolição da possibilidade jurídica do pedido. Esta, se o projeto do novo CPC for aprovado da forma como está redigido, passaria a ser englobada pelo interesse de agir.

Em seguida, o Professor Alexandre passa a discordar do Professor Fredie quanto à absorção das condições da ação pelos pressupostos processuais. Embora o projeto do novo CPC não faça uso da expressão “condições da ação”, nem do termo “carência de ação”, não se poderia entender, na sua opinião, que a categoria “condições da ação” seria eliminada ou abolida. Isso porque esta diz respeito à ação, enquanto os pressupostos processuais concernem ao processo. Sendo a ação e o processo institutos distintos, cada um tem seus próprios requisitos, não sendo possível confundir as condições da ação com os pressupostos processuais. Tanto aquelas como estes persistiriam com o advento do novo CPC.

4.      Posicionando-me sobre o tema: a eliminação da possibilidade jurídica do pedido como uma das condições da ação

Parece-me boa a eliminação da possibilidade jurídica como condição da ação. Aliás, defendo, há algum tempo, que tanto a possibilidade jurídica do pedido como a legitimidade de parte constituem questões de mérito. Assim já disse:

“A bem da verdade, a prática tem revelado não haver qualquer distinção entre a impossibilidade jurídica e a rejeição do pedido, de tal sorte que uma sentença que extinga o processo sem julgamento do mérito por impossibilidade jurídica do pedido contém, indiscutivelmente, o mesmo sentido da que rejeita a pretensão formulada pelo autor, à mingua de amparo legal.

Quanto à ilegitimidade de parte, argumenta-se que, reconhecendo-se que o sujeito do processo efetivamente não é sujeito da relação de direito material, na verdade a decisão judicial cuidou de negar sua pretensão frente à outra parte, restando por rejeitar o pedido formulado na petição inicial”[2].

O Código de Processo Civil de 1973 optou, entretanto, por exigir as condições da ação para que se pudesse examinar o mérito, estabelecendo, em seu art. 267, VI, que seriam três: a possibilidade jurídica do pedido, a legitimidade de parte e o interesse de agir. Costuma-se dizer que a possibilidade jurídica do pedido consiste na admissibilidade em abstrato do pronunciamento postulado, segundo as normas vigentes no ordenamento jurídico. Em outras palavras, o pedido seria juridicamente possível se ele encontrasse respaldo no sistema jurídico perante cujo juiz é formulado.

Na verdade, se o ordenamento jurídico proíbe determinado pedido, é porque a parte não tem direito ao que pede. Essa é uma questão de mérito, apta a acarretar, inclusive, uma sentença que produz coisa julgada material. Ao proclamar a impossibilidade jurídica do pedido, o juiz está, rigorosamente, a denegar ao autor o “bem da vida” perseguido.

De igual modo, quando o juiz reconhece a ilegitimidade de parte, está a denegar-lhe a pretensão processual formulada. Se alguém propõe determinada demanda, mas não dispõe de legitimidade para tanto, não é, na verdade, titular do direito afirmado em juízo. A questão da legitimidade é igualmente de mérito, apta a produzir coisa julgada material.

Toda a doutrina, ao interpretar o disposto no art. 268 do atual CPC, afirma que o autor, uma vez proferida sentença de carência, pode propor novamente a demanda, desde que adquira a legitimidade ou caso o pedido passe a ser juridicamente possível. Não se aceita a repropositura automática, sem a correção do vício. Ora, como defendo há algum tempo, “se somente será possível a repropositura da demanda, caso haja a implementação do requisito cuja ausência rendeu ensejo à carência de ação, é curial que apenas se admite o ajuizamento de outra demanda, com a modificação de um dos seus elementos, quais sejam, as partes, o objeto ou a causa petendi”[3].

O projeto do novo CPC, ao que parece, encampa essa orientação, eliminando a possibilidade jurídica do pedido como condição da ação. Se o pedido for juridicamente impossível, haverá sentença de improcedência, com coisa julgada material. Sendo juridicamente impossível o pedido, a parte que propõe sua demanda poderá, independentemente disso, ter interesse de agir, a depender dos elementos extraídos da análise de sua causa petendi. Ainda que impossível juridicamente o pedido, pode haver necessidade ou utilidade na prestação jurisdicional postulada, de sorte que não se confunde a possibilidade jurídica do pedido com o interesse de agir. A parte pode ter interesse de agir, apesar de ser impossível juridicamente seu pedido. Como, entretanto, o pedido é vetado pelo sistema normativo, a solução será a improcedência.

Com isso, eliminam-se as dificuldades trazidas pelo CPC de 1973 quanto à distinção entre condições da ação e mérito.

As dificuldades de separar a possibilidade jurídica do pedido e a legitimidade de parte das questões de mérito fizeram com que se concebesse a teoria da asserção, com a adoção de um método de distinção: se a questão se examina in statu assertionis, ou seja, considerando-se apenas as alegações contidas nas petições apresentadas em juízo, trata-se de uma condição da ação, mas se se exige a análise das provas, então a questão passa a ser de mérito. A teoria da asserção ou prospettazione foi concebida para que se pudesse distinguir as condições da ação do mérito, minimizando as críticas desferidas contra a teoria eclética de Liebman[4].

Se não há mais impossibilidade jurídica do pedido como condição da ação, o veto normativo a determinada pretensão processual configura juízo de improcedência, e não de inadmissibilidade. E, muitas vezes, essa improcedência é proclamada somente com o exame do ordenamento jurídico, sem ser necessário investigar o acervo probatório. Deixa de ter relevância, no ponto, a teoria da asserção, eis que desaparece a dificuldade de se distinguir a impossibilidade jurídica do pedido da improcedência, já que abolida aquela pelo projeto do novo CPC.

Penso, enfim, que, com o projeto do novo CPC, não haverá mais a possibilidade jurídica do pedido como condição da ação. Os casos de impossibilidade jurídica do pedido passarão a ser hipóteses de improcedência do pedido. A iniciativa é louvável e merece, realmente, elogio.

5.      Ainda me posicionando sobre o tema: as condições da ação como elementos integrantes do juízo de admissibilidade do processo

Na Teoria Geral do Processo, há três importantes institutos, que são autônomos: a ação, o processo e a jurisdição. Embora autônomos, estão interligados. A ação provoca o exercício da jurisdição pelo processo. O processo forma-se pela ação, culminando com a efetiva prestação da jurisdição.

A categoria das condições da ação sempre se relacionou com a ação, enquanto os pressupostos processuais dizem respeito ao processo. Ausente alguma condição da ação, a parte seria carecedora de ação, não existindo os requisitos constitutivos do direito de ação. Não preenchidas tais condições, a ação não existiria e, consequentemente, também não estaria o juiz a exercer atividade jurisdicional, na medida em que, para Liebman, só há jurisdição se houver ação e vice-versa.

Atualmente, tem prevalecido o entendimento de que tanto as condições da ação como os pressupostos processuais inserem-se no juízo de admissibilidade do processo, devendo estar presentes para que se possa proferir uma sentença de mérito. Como esclarece Cândido Rangel Dinamarco,

“É muito cara à doutrina brasileira a indicação de três ordens de pressupostos de admissibilidade do provimento jurisdicional, a saber: as condições da ação, os pressupostos processuais e os pressupostos de regularidade do procedimento e dos atos que o compõem. Não é tão importante fazer essa separação, todavia. Da perspectiva de quem examina o processo para verificar se o provimento deve ser emitido ou não pode sê-lo, basta enunciar linearmente todos os requisitos dos quais tal emissão depende, sem a preocupação de agrupá-los em categorias. Todos eles situam-se em um só patamar operacional, sendo objeto de um dos dois juízos a serem feitos pelo juiz no processo: antes de se decidir sobre o teor do provimento de mérito a ser emitido, ele decide sobre se o proferirá ou não. Todos os pressupostos de admissibilidade do mérito situam-se no patamar das preliminares, que antecede e condiciona o do julgamento do mérito”[5].

Como bem observa Rodrigo da Cunha Lima Freire, as condições da ação e os pressupostos processuais integram os requisitos de admissibilidade para o exame do mérito. Sua reunião numa só categoria não foi, entretanto, a opção adotada pelo Código de Processo Civil de 1973. Não seria, então, possível agrupá-los numa só categoria em razão da opção legislativa atualmente em vigor[6].

O projeto do novo CPC não faz uso das expressões “condições da ação” e “carência de ação”, podendo desse silêncio extrair-se a conclusão de que não há mais essa categoria autônoma, de sorte que não se poderia mais afirmar que a falta de uma “condição da ação” acarretaria “carência de ação” ou inexistência da ação e do processo.

Não havendo mais a categoria “condições da ação”, a legitimidade e o interesse passam a integrar o juízo de admissibilidade do processo, havendo apenas pressupostos processuais e mérito.

A circunstância de a ação e o processo serem institutos autônomos não impõe que haja necessariamente, como categorias autônomas, as condições da ação e os pressupostos processuais. O processo surge com a propositura da demanda. Esta constitui um ato jurídico que acarreta a formação do processo. Para que o processo tenha desenvolvimento válido, é preciso já que a própria demanda seja validamente exercida, de sorte que os requisitos de validade da demanda podem ser requisitos de validade dos demais atos processuais, pois viciado o ato jurídico de demandar, haverá contaminação aos demais atos, salvo se não resultar prejuízo ou se o resultado de mérito puder ser favorável ao réu.

Sempre me pareceu que a possibilidade jurídica do pedido e a legitimidade de parte seriam questões de mérito. Essa conclusão não poderia ser obtida diante do texto do atual CPC, que prevê, expressamente, em seu art. 267, VI, do CPC, a possibilidade jurídica do pedido, a legitimidade de parte e o interesse de agir como condições da ação, estabelecendo que sua ausência implica a extinção do processo sem resolução do mérito.

O texto dos dispositivos do projeto do novo CPC, diversamente, não se refere mais às expressões “condições da ação” ou “carência de ação”, sendo possível extrair daí a intepretação segundo a qual não há mais condições da ação como categoria autônoma do direito processual.

A possibilidade jurídica do pedido passaria, então, a ser questão de mérito. De igual modo, a legitimidade passaria a ser questão de mérito. É relevante lembrar, a essa altura, a distinção entre a legitimidade ordinária e a extraordinária. Só se caracteriza como matéria de mérito a legitimidade ordinária, sendo a extraordinária integrante do juízo de admissibilidade do processo.

A legitimidade ordinária é reflexo do direito material, sendo questão de mérito. Se o juiz conclui pela falta de legitimidade ordinária, o que está a decidir, em verdade, é pela ausência de titularidade do direito invocado, denegando a postulação formulada: declara não ter razão o autor, por não ser titular do direito; profere, enfim, sentença de improcedência.

Embora a legitimidade extraordinária esteja relacionada com a relação material, sendo estabelecida em razão do nexo existente entre as relações jurídicas de titularidade do legitimado ordinário e do extraordinário[7], não constitui uma questão de mérito. Se o substituto processual não dispõe de legitimidade, a sentença que assim o reconhece não denega o direito do substituído. Com efeito, quando o juiz reconhece a ilegitimidade ad causam do substituto processual, não está a rejeitar o reconhecimento do direito do substituído; está, apenas, a observar que, naquele caso, o sujeito não está autorizado a, em nome próprio, postular direito alheio. Significa, então, que a legitimidade extraordinária é uma questão de admissibilidade do processo, e não de mérito.

Pelo texto do projeto do novo CPC, a possibilidade jurídica do pedido e a legitimidade ordinária da parte passariam, então, a ser questões de mérito. Ao lado das questões de mérito, haveria os pressupostos processuais em cujo âmbito estariam inseridos o interesse de agir e a legitimidade extraordinária.

6.      Conclusão

Por essas razões, e reafirmando um entendimento que defendo há mais de dez anos, acosto-me à opinião do Professor Fredie Didier Jr., com a devida venia do Professor Alexandre Freitas Câmara, para concluir que, se o projeto do novo CPC for aprovado desse jeito, não haverá mais a possibilidade jurídica do pedido como condição da ação, sendo a impossibilidade jurídica do pedido uma improcedência, juntamente com a legitimidade ordinária da parte. Ademais, aprovado que seja o projeto desse modo, não haverá mais as condições da ação como categoria autônoma, passando o interesse de agir e a legitimidade extraordinária da parte a constituir pressupostos processuais.


[1] CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Interesse de agir na ação declaratória. Curitiba: Juruá, 2002.

[2] Ob. Cit., n. 2.5, p.76-77.

[3] Ob. Cit., n. 3.2, p. 125.

[4] A propósito, é oportuno observar as críticas feitas por Dinamarco à teoria da asserção (Instituições de direito processual civil. São Paulo: Malheiros, 2001, v. 2, n. 553, p. 313-315).

[5] Instituições de direito processual civil. São Paulo: Malheiros, 2001, v. 2, n. 727, p. 616-617.

[6] Condições da ação: enfoque sobre o interesse de agir. 3a ed. São Paulo: RT, 2005, n. 2.4, p. 75.

[7] BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001, n. 23.4, p. 81.

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